quarta-feira, 19 de maio de 2010

MELHOR DO QUE CONCHINHA

Para Eduardo Nasi, amigo de boas ideias


Arte de Tereza Yamashita



Não será dormindo de conchinha que revelamos amor na primeira noite.

A posição é excessivamente controlada. Posada.

Tem até lógica: prevenir o roubo do lençol. Mas a cena não ultrapassa a praticidade romântica. É um pouco infantil, uma regressão ao ventre. Nesta hora, ninguém precisa mais de posições fetais. E do colo de mãe.

Amor se revela quando os dois vão dormir e se acordam amontoados. As pernas femininas sobre as pernas do homem, os braços enrolados como fantoches, os beijos agora suspirados; uma sensação de clandestinidade no próprio corpo. Como um barco cubano, absolutamente ilegal, atravessando o Oceano Atlântico em direção à Miami.

Quem apaga amontoado confessa atração química. Não se rendeu, apesar do gozo, do sono, do medo de ser inconveniente. Sentirá câimbras, formigamentos. Ou não sentirá nada de manhã com a dormência dos movimentos. Qualquer que seja o imposto, não se mexe. Não abandona sua vigília. Não confia que conquistou, que seduziu, que concluiu.

O casal amontoado é ambicioso. Ambos não dormem juntos, já moram juntos um na nudez do outro. Como se estivessem mortos, porém intensos, vivos, alucinando mais do que sonhando.

Os longos cabelos negros encordoando o peito masculino, as coxas ainda atentas, os seios curiosos. A tensão permanece, a conversa prossegue no escuro com exclamações ilegíveis, a mão é um abajur aceso. Não é um descanso organizado, planejado; é um sono de fundo falso, agitado de sons, sobrevoando o conforto. Uma ânsia de ficar junto de qualquer jeito, aproveitar toda a pressa da pele. Finge-se desmaio para prosseguir o trabalho com a respiração.

O casal pode estar exausto, arrebentado por tudo o que foi dado, mas ele e ela ainda se caçam de modo involuntário. Entendem que o sexo pede mais carícia. Não foram cada um para seu lado, aliviados do prazer. Muitos menos desejaram a tranquilidade caseira do encaixe. Não se cansaram da proximidade. Estão lutando pela permanência na memória, brigando para não serem esquecidos, insistindo para que se telefonem no dia seguinte, arrumando motivos e desculpas.

Amontoar é o momento em que mostramos que o cheiro nos agrada, que não há como voltar a ser como antes.

Significa que nenhum dos dois vai se separar de manhã. Não terminaram de se encontrar.






Crônica publicada no site Vida Breve

28 comentários:

Eduardo Nasi disse...

Não é todo dia que se vira muso comendo pizza de abobrinha. Obrigado.

Unknown disse...

Não concordo com a tua análise, sexo onde cada um vira para o lado e dorme é coisa de tio e tia cansados. Acho sim que o rolar no meio do sono e acordar encaracolado seja sinal de urgência, mas não tem nada pior do que se pegar e depois virar para o lado e puxar um ronco.

Anônimo disse...

Genial, Carpinejar!
Pensando bem, de fato, dormir de conchinha exige menos coragem. Vou me desafiar!

Luciana Martinez disse...

Amei! Autoriza reproduzir no meu blog Coisas que eu vi, com seus devidos créditos?
Sou amante do que escreve seu ca-na-lha!...rs
Beijo!

Estefani disse...

Sem palavras como sempre! Perfeito.

Beijo.

Leandro Lima disse...

"Significa que nenhum dos dois vai se separar de manhã. Não terminaram de se encontrar."
Sem mais para o momento!

=D
Abraço, Fabro!

Fabrício disse...

Mais um texto perfeito!

Que a fonte não seque nunca!!

Abraço.

Renata de Aragão Lopes disse...

Hummmmmmmm...

Anônimo disse...

Dormir e acordar "de conchinha" é coisa de novela. A vida real é feita de encontros amontoados. Excelente texto! Vida longa a Carpinejar!

Anônimo disse...

acho que fez amor, só sexo por conveniência

Gilmar disse...

Você escreve com maestria!
É uma leitura fácil e extremamente prazerosa! Rica! Espetacular!
O desfecho, então, é soberbo!
Espero poder conhecê-lo na Expominas (Bienal do Livro/BH).
Fraterno abraço.

K. disse...

Adoro como vc descreve as coisas mais simples e ao mesmo tempo complexas...
É um mergulho nas idéias.
Parabéns!

Unknown disse...

Fabrício, tu superas minhas expectativas!!
Muito perspicaz!!
Obrigada!!
:)

Ramiro Conceição disse...

MÚLTIPLO
by Ramiro Conceição


Quando se ama,
a gente vira gente
do tamanho certo.
O amor é múltiplo do inteiro.

Gabriela Lira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriela Lira disse...

Lindo retrato falado do amor, sem nenhum figurativismo. Amor, pós-amor, sempre-amor... afinal, já diria Mário Quintana: o amor é quando a gente mora um no outro. Nesse amontoado de pernas e braços, corpos e almas.

juliana disse...

Rico em detalhes como sempre, leio e reeleio teus textos e me deleito toda vez.
Parabéns Fabro.

Maria Tereza disse...

Lindo texto, embora EU deteste dormir de conchinha! rs..

Menina Marina disse...

Chorei. Ponto.

Giuliana disse...

Adorei...pq essa ditadura do "dormir de conchinha" é um saco. Eu não gosto, aí qdo falo isso, as pessoas dizem "Nossa, que falta de romantismo" (rsrs).

Cristina Casagrande disse...

É lindo! Parabéns!

Luciana Martinez disse...

Não aguentei esperar sua resposta, me perdoe...

http://coisasque-euvi.blogspot.com/2010/05/melhor-do-que.html

Beijo!

Dalva M. Ferreira disse...

Fantástico. Invejinha...

Lu disse...

sempre muito ótimo :)

DÉBORA disse...

Maravilhoso!
Abraços!

graziela disse...

Adorei esse post. Mas não é por que concordo contigo, é por ser lindo mesmo.

bjo

Dani Cesar disse...

Sono de fundo falso... Stupendo!

Janaina disse...

PERFEITO! Enfim alguém que fala a verdade.
Dormir de conchinha é realmente incômodo. Sempre acordo channel... rs.
É muito mais gostoso sentir o braço dele pesando sobre o corpo num abraço sonambulo... e essa contínua movimentação na cama mesmo adormecidos.
Melhor ainda quando vc acorda com o rosto dele bem coladinho ao seu, bem de frente! :D