Quando alguém fala de meus filhos recebo como uma crítica. Mesmo que seja uma recomendação ou um conselho ou um elogio.
Entendo que a criação que ofereço está sendo discutida. Levo para o lado pessoal.
Eu embruteço, solto os pés de galinha dos olhos, afundo as rugas das sobrancelhas. Cavo um motivo subterrâneo para aquele papo. Não relaxo. Sinto-me ameaçado. Logo estarei na defensiva, arrumando argumentos para revidar no ato, nem escuto direito.
Ora, que pretensão, falar de meus filhos como se conhecessem melhor do que eu. Pode ser a mãe de um colega, o pediatra, o porteiro do prédio. Cultivo a paternagem centralizadora. Mais advogado de defesa do que pai. Obrigo as notícias a passarem pelo meu visto, pelo sinal de OK. Não democratizo as tarefas, muito menos a vocação. Deveria deixar a vida também criar minhas crianças. Educação de qualidade é guarda partilhada com o mundo.
A namorada já percebeu que as conversas girando em torno de Vicente e Mariana resultam em cara amarrada, com rosnado ao final. Tem medo de puxar o assunto, venho criando resistência onde há mais amor.
Ela ironizou que fico mais ofendido com uma insinuação sobre minha paternidade do que com qualquer brincadeira sobre o desempenho sexual.
Acho que não me perdoei pela separação, que aumentou minha exigência e redobrou a necessidade de controlar o incontrolável. Ou talvez não me permita fracassar onde tanto sofri quando pequeno. Pretendo realizar mais do que o disponível, e me culpo por trabalhar e não estar presente em tempo integral. Pretendo me superar, mas se mover sempre com superação é castigar a honestidade do convívio. A prevenção corre o risco de virar controle totalitário.
Pai bem resolvido não existe. Não sou bem resolvido, confesso com todas as têmperas. Sou alarmista.
E já estive do outro lado e não guardei a paciência. Eu decorava as lições para prova na cozinha quando minha mãe lavava a louça. Batia continência, ao lado dela, lendo em volta alta as questões para não me esquecer durante o teste. Ela repetia as perguntas e eu respondia sem consultar o caderno. Grande parte do meu estudo seguiu no formato de aparador. Contente com os acertos, eu pulava e abraçava a mãe. Naquele momento, a água respingava nas folhas. Pois é, a alegria nunca é impune. Isso gerou a maior investigação escolar. Um legítimo bafafá de corredor. Ao entregar os cadernos para a correção, a professora chamou a direção que chamou a minha mãe. Foi uma conversa particular no gabinete do Serviço de Orientação.
- Seu filho está chorando. Aconteceu algo de diferente em casa?
- Chorando?
- Seus cadernos estão borrados, o lápis manchado. Acreditamos que ele chora ao fazer os temas. Você obriga o menino a cumprir as tarefas, coloca de castigo?
- Não, de nenhuma forma.
- Ele receberá a vigilância de nossos orientadores até resolvermos o problema.
Hoje, unicamente, esclareço o desconforto, cruzo as fontes e as cenas. A mãe ganhou a desconfiança à toa, eu parecia vítima de maus tratos e era mais cuidado do que pássaro nascendo.
Situação idêntica experimentei com Vicente, 8 anos. Ele chorou na saída do seu turno. A professora nos confidenciou com um semblante grave, típico da salinha de hospital. Lembrava um diagnóstico, não uma informação provisória. Eu adoeci, articulava de que um colega bateu nele, que suportava constrangimentos intermináveis no recreio. Tentei tirar, a todo custo, a informação preciosa do meu menino. Ele resmungava:
- Não foi nada, pai.
Seguiram dias e dias cerceando a história. A dificuldade de confessar do filho aumentava a minha insistência, julgava o assunto sério demais a ponto de se envergonhar e manter o silêncio.
Após briga, ele explodiu e explicou que a professora apresentou sua foto em um filme comemorativo do aniversário do colégio. Tímido como é, acabou seriamente encabulado.
Minha paternidade tem que relaxar. Sofro em vão pelo medo de sofrer. Falta-me a simplicidade de um pano de prato.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 114, Número 198
Maio de 2010
12 comentários:
Quando digo que voce é um dos poucos homens que tem alma de mulher...é por isso!
A paternidade não é simples como um pano de prato, é um enxoval inteiro.
fica a dica de uma ferramenta, se necessário for:
http://abensonhado.blogspot.com/2010/05/parangolele.html
Pedir pra não preocupar-se é inútil. Acho que todo pai passa por isso. Relaxa, Fabrício. Texto incrível, como sempre!
Como isso é verdadeiro! É impossível ouvir qualquer sugestão, crítica, "dica" sem levar para o pessoal, sem pensar que questionam nossa forma de educar.
Outro dia fui buscar meu filho na escola. Toda feliz em fazer aquela surpresa. E ele ficou claramente contrariado. Morri por dentro. Entendi que na realidade ele estava experimentando, pela primeira vez, ter a avó a buscá-lo e fazia apenas 3 dias. Eu ali significava o risco de não ir para a casa da avó. Isso para uma criança de 5 anos que passou 3 no período integral da creche. Era natural... mas doeu!
Amor de pais não é nada racional, por que tentar fingir que racionalizamos? Chorei de manchar o caderno...
Beijos.
E um dia virão os netos, o amigo poeta nem imagina o quão coruja podemos ser com um neto.
A a paternidade e o prenuncio da ancestralidade.
Pai bem resolvido não existe! Isso é um dogma, por mais que não quisesse ser.
Sou muito fã dos teus textos. Nem tenho twitter mas entro todos os dias no seu, no blog também. Quando puder, retribua a visita: janelasdemarina.blogspot.com
Super beijo e boa semana
Prazer! Gostei da postagem, me identifiquei. Abraço. Sucesso!
Um dia eu escreverei bem assim. ADORO o seu blog, te sigo no twitter, e te admiro como pessoa, lindo, lindo texto mesmo.
www.trueslove.blogspot.com/
Que percepção !
Não admitimos falhar naquilo que fracassamos ou vimos fracassar na infância. Que percepção!
^^ Fabro sempre faz-me ri com as suas neuras
isso é coisa de mãe, relaxar ok?
mas ainda assim admiro muito sua relação com seus filhos ^^
Postar um comentário