Escritor é fofoqueiro. Fofoca até o que acontece em sua imaginação. Se a vida não ajuda, ele trata de ajudar a vida inventando casos. É um trabalho em equipe.
Uma das minhas euforias é contar o dia para minha namorada. Volto de uma palestra, de uma aula, e vou falando sem nenhum empurrão. Narro que toquei no braço da poltrona e vi um chiclete colado no forro e fiquei sondando qual foi o palestrante porco que me antecedeu, lembro que fui elogiar um brinco da mediadora e era uma cicatriz, falo mal de uns e de outros, reproduzo o desempenho dos estudantes que mais crescem na atividade, cristalizo frases do Vicente (“Só sonho nos finais de semana, quando tenho direito a dormir até 8h30”) e coleciono dados para impressioná-la, tipo que a empresa Marco Polo vendeu 700 ônibus para Copa ou que Robinho é o jogador que fez mais propagandas no país. Confesso o que comi no almoço, o que jantei, quem encontrei, atualizo as histórias de meus amigos prediletos (todo amigo é uma fotonovela). Reproduzo frases do twitter, explico os textos que escrevi, sou uma draga.
É evidente que busco o contraponto e pergunto no meio da catarse noturna: “Como foi seu dia?”
Instante de tirar os sapatos, relaxar e intercambiar experiências. É a pausa para não me envaidecer com as próprias lembranças e desafiar os olhos a piscar devagar.
Mas ela me responde sempre com “bom”.
E o atendimento?, insisto.
“Deu tudo certo.” E o papo termina sem mais nem menos. Não termina, expira.
Namorar uma psiquiatra é o equivalente a namorar um agente secreto. Não há passado, mas prontuários. Ela não me abre coisa alguma, avisa que é tudo privado e segredo de paciente. Uma confidência de padre. Que não insista, que sua clientela confia nela. Tem uma bula de argumentos: se cochichar um hábito, sou bem capaz de reconhecer seu portador na rua.
Já ousei trilhar as perguntas de vários caminhos e sou interceptado com lacônicas generalizações. Não me esclarece se é homem ou mulher, sua saída é usar “uma pessoa”. Alta ou baixa? Nunca. Magra ou gorda? Nunca.
Fujo de seu telefone para não causar mal-estar. Quando tem uma urgência, saio de perto e cantarolo a fim de abafar o som. Eu me reprimo para não me deprimir.
Cogito em criar uma associação dos namorados e das namoradas de psiquiatras. Para discutir tudo o que não sabem dos seus parceiros e como admitir a inexistência diurna.
O máximo de intimidade é quando ela diferencia o atendimento entre pesado e leve. Pouco alcanço o que está passando, do que enfrentou em horas e horas de divã, se tem conseguido absorver traumas e resistências. Quem diz que não está metida numa boca braba? Não irei desconfiar. Não há um vazamento para descobrir a calha quebrada. Ela não fala, não pode falar. Não comenta uma indiscrição, guarda para si, uma pira espartana. Partilha convicções de uma seita, participa de uma mensagem cifrada, abraçou uma vocação, uma missão altamente solitária. Algo que minha curiosidade não aceitará. Não faz nenhuma diferença se prometo segredo — ela me achará abusado e invasivo. Não está no horizonte correr riscos profissionais pela minha carência. É assim e que trate de me acostumar.
Se eu fosse um colega, talvez me pedisse conselhos, talvez me ligasse para confirmar a dosagem da medicação, talvez dedicasse noites a detalhar fatos e cruzar informações. Apaziguada, desligaria o abajur, encostaria o rosto no peito e me agradeceria sinceramente pela ajuda e paciência. Eu me sentiria importante, lavaríamos os jalecos na mesma máquina de lavar. Ela não arderia de medo das minhas palavras e atitudes. Em nossas gargantas, haveria um idêntico juramento de formatura.
Mas eu não tenho anel verde de médico, meu sonho é a aliança que simplifica e democratiza as confidências, sofro horrores porque desconheço o dia dela. Não diferencio sua segunda da terça da quarta da quinta da sexta. É tudo um dia bom.
Ou arrumo um psiquiatra para desabafar ou curso Psiquiatria enquanto é tempo.
Crônica publicada no site Vida Breve
18 comentários:
acha que quero me associar nessa entidade, lembrei de um episodio de friends que a lisa começou a namorar um psiquiatra e ele Sabia o porquê de certas manias e ações,os amigos dela estavam quase enlouquecendo. deve ser desafiador se relacionar com psquiatras.
Eu, enquanto psicóloga, entendo bem o que tu escreveu e faço o contra-ponto da visão de quem não pode, ao final do dia, dividir com o seu parceiro as inúmeras histórias que ouviu, os dramas do qual pôde fazer parte por aqueles 50 minutos. Meu namorado sempre percebe quando estou mais leve ou pesada ao fim de um dia de trabalho, e sempre penso como seria legal um dia fazer uma supervisão só com "leigos" da área psi. Ouvir percepções e compreensões de quem não tem formação na área. Tenho certeza de que surgiriam coisas muito mais úteis do que às vezes saem quando pagamos uma supervisão com colegas "mais experientes". De qualquer maneira, não acho que tu precise fazer curso algum de psiquiatria. Terapia sempre é bom, obviamente. Mas acho que tu consegue suportar bem esse sigilo que ela guarda, porque isso mostra que ela tolera aguentar cargas, e que cada um de nós pode aprender a fazer sempre um pouco mais disso com suas próprias. Beijos pra ti e pra ela.
Que seja pela ética profissional, mas eu não gosto das pessoas que se fecham, que resumem o dia em monossílabas. Se não pode contar a realidade das coisas, fale o que sentiu acerca delas, ou que músicas ouviu no trânsito, ou no que pensou entre uma consulta e outra, sei lá. Tem sempre alguma coisa a ser dita. O que não vale é deixar de viver pra tolerar a vida d@ outr@.
Talvez deem certo porque você gosta das palavras e ela, de ouvir.
Melhor assim, porque, caso contrário, você precisaria gastar uma pequena fortuna com uma peça decorativa: um divã descomunal, no meio da sala, expulsando sofás e poltronas (que injustiça!).
Apreciei a postagem,Fabrício.
Abraço e muito sucesso para vocês!
Amo muito tudo isso!!!!! =D
Bjs, Nati.
Vi seu site e a foto do seu avó... Vc tb toca/tocou violino?
Fala pra Cínthia reativar o blog "fala nossa: crônicas de um consultório". Quam sabe o que ela dizia lá era 50¢ verdade. Daí a gente tbm mata nossa curiosidade! hehehehe!
Abçs!
Se a associação incluir namoradas de psicólogos, to dentro.
Além de amor, deu para sentir que você tem muito orgulho dela. Parabéns.
Caro Fabro,
com o mesmo terapeuta, fiz 20 anos ininterruptos de psicanálise.
O tratamento foi um sucesso… Ganhei alta quando ele morreu.
Em tempo ainda...
O bicho foi bom e um bem...
Não derramei uma única lágrima
quando da sua passagem,
apesar de amá-lo,
no profundo,serenamente...
Oi Carpinejar, sou uma seguidora do seu twitter e fã do seu blog. Parabéns, você escreve muito bem.
Este texto me chamou atenção pois, assim como vc, sou jornalista e meu noivo é médico. Como sempre eu falo demais, conto sobre meu dia e ele nunca fala nada sobre os pacientes dele. Me sinto assim, meio que por fora do dia dele. Mas é assim mesmo. Desejo tudo de bom para você, sua namorado e filhos.
um abraço
Pra finalizar os meus comentários sobre o seu "sigilo profissional", amado poeta, é sempre bom lembrar disso:
http://www.youtube.com/watch?v=r4p8qxGbpOk
Gostei bastante!
Abraço,
Mileny
Oie
Meu namorado está assim...fala, fala, fala. Não sou psiquiatra, mas quando chega o momento que ele pergunta: Como foi seu dia?
Eu já não tenho mais o que comentar...Custa fazer um jogral no desabafo do dia?
Reclamações de uma namorada...
Meu travesseiro é assim tbém, não me conta nada! Morro de raiva! :D
Imagina então namorar um agente secreto?
Um grupo de auto ajuda pra nos, por favor. Rs
Postar um comentário