quarta-feira, 20 de outubro de 2010

MUDANDO DE ARES

Arte de Cínthya Verri


Quando sou levado para palestras, nunca peço para que seja ligado o ar-condicionado. Temo a pergunta e vou abrindo a janela.

Não é o medo de ficar gripado ou estragar a voz. É um receio mais poderoso, intuitivo, é descobrir a personalidade do motorista.

Não partilho da visão de que o cão revela a cara do seu dono e que ambos se parecem com a convivência. Meu tio Paulo era um buldogue e cuidava de um linguicinha.

Acalento a convicção de que o caráter do homem está no ar-condicionado. Na ventilação. Já entrei em carro que o ar tinha bafo de cervejeiro, o hálito de um engradado, denunciava que o proprietário surgiu de uma paixão proibida entre o gambá e a esponja. Para reforçar o tipo, o motorista ainda escutava pagode. Às vezes, não entendia bem o que estava acontecendo, se o cheiro vinha do rádio ou o pagode vinha do ar.

Carro de locadora é também um inferno, impregnado de pinho sol. O desinfetante é absolutamente forte. Os olhos ardem. Impraticável dirigir; é para nadar numa privada. Nem descarto a hipótese de que houve um homicídio no porta-malas e abafam o passado.

Aconselho também a não tomar táxi parado de madrugada. Controlei a ânsia de vômito, o aparelho não refrigerava, emitia gases tóxicos. Sei lá se o condutor estava dormindo e soltou violentos puns. Sem sair do lugar, fui transportado para o banheiro da rodoviária. Na saída, faltou coragem para pagar a corrida com um rolo de papel higiênico.

Carro de cachorreiro é igualmente brabo de engolir: cachorro molhado é um elogio, é cachorro afogado. Os bancos são escorregadios, com pelo e uma umidade invencível de pântano. O cinto de segurança será a menor das coleiras.

Ar de fumante tem atmosfera de presídio, ar de viajante é de tempestade de areia, ar de infiel exala as fragrâncias suspeitas de sachê, ar de místico é de incenso, ar de pintor de paredes é de ferrugem, ar de traído é de pelego, ar de empresário é de lavanderia, ar de velha é de crochê e blush, ar de pedreiro é de desodorante Avanço, ar de terapeuta é de tangerina e banana, ar de médico é de hortelã, ar de mãe recente é de queijo misturado a Shampoo Johnson, ar de advogado é de livraria, ar de suicida é de porão, ar de tarado é de bala de goma.

Como passageiro, não posso trocar os filtros, mas filtrar as caronas.



Crônica publicada no site Vida Breve

14 comentários:

O Neto do Herculano disse...

E o ar de escritor?

Fátima Nascimento disse...

Fiquei curiosa pra saber qual "cheiro" tem ou teria o seu carro. E então? Meu abraço. Ah, texto "saboroso".

Sueli Maia (Mai) disse...

São os cheiros naturais da lida, do mundo... e sem artifícios ou perfumaria - todo homem pode exalar mau odor.
"Acalento a convicção de que o caráter do homem está no ar-condicionado". Impagável!

ana disse...

Ar de criança é de manteiga e bolacha.Ar de poeta é de roupão. Ar de escritor é de loção de barba e pijama.Bjs

Leandro Lima disse...

"...ar de pedreiro é de desodorante Avanço, ar de terapeuta é de tangerina e banana, ar de médico é de hortelã, ar de mãe recente é de queijo misturado a Shampoo Johnson, ar de advogado é de livraria, ar de suicida é de porão, ar de tarado é de bala de goma."

Caraca, que legal! Você acertou todas! E reafirmo a do advogado. Tenho um amigo que o carro dele é uma livraria automatizada mesmo e, claro, só tem cheiro de papel.
Gostei, Fabro!
Abraço.

Obs.: Gostaria de saber qual o cheio condicionador de ar do escritor...

lídia martins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lucas disse...

Carpineeeejar me ajudaaa
tenho um trabalho da escola sobre voce

Quais sãos as suas principais caracteristicas e os seus temas???

muito bom o blog =D

lídia martins disse...

É o primeiro escritor a exortar sorrisos pelos olhos, para que não entrem em jugo desigual com os descrentes.


Mudando de ares,


Acho que o ar de um escritor deve ter hálito de um fantasma com refluxo, mas, voluntário de ideologias.


Caio de joelhos e rogo:

Ensina-me a caminhar sobre as águas.
Ou me recusarei a comparecer à esta audiência de realidades.


Com louvor,


Pipa.

ariane disse...

Eu tenho uma teoria:
Carpinejar deveria ser verbo e não sobrenome. Aí, ao invés de só ler, ver, ouvir e admirar, poderíamos conjugar Carpinejar. Já pensou o mundo todinho carpinejando por aí? Eu carpinejo, tu carpinejas, ele carpineja, nós carpinejamos e assim sucessivamente. Que bonito seria o mundo! Que maravilha seria viver!
Bjinhos de quem te acompanha e se encanta contigo há muito, muito tempo,
Ariane

Dani disse...

depois das palavras da Ariane, o que eu vou falar?

só me ocorre que carinho tem cheiro bom :)

adorei o texto!

Bia Bernardi disse...

Tantos cheiros que até me confundi!
Acho que meu carro tem cheiro de guarda roupa de roupa guardada... Topa uma carona? rs

Aline Ramires disse...

O cheiro de bala de goma é o melhor. Tenho esse habito de ficar com o cheiro na memória, principalmente das pessoas, e dos lugares, o meu preferido inclusive é o cheiro da minha ''ex'' sala de pintura, um cheiro de mofo, misturado com tinta acrílica, e oléo, e uma pitada de verniz. Nossa amei.

Marcelo Soares disse...

Lendo seu texto, não me preocupei com os cheiros que sinto, mas sim com o cheiro que as pessoas lembram de mim, ok que sou aspirante a médico veterinário, mas não quero que lembrem de mim pelo cheiro de cachorro/gato, vou perguntar isso a amigos!

Também tenho a mania de reconhecer o cheiro das pessoas e ambientes, na condução que pego pra voltar pra casa de meus pais, existe um ser, estudante de agronomia, que ainda não descobriu a verdadeira função do desodorante, e sim, esse é o cheiro que mais me incomoda, e, que tenho o prazer e afirmar que desse mal não sofro!

Abraços!

Mario disse...

Eu não uso o ar condicionador, porque eu acho que é ruim para a ecologia