A lanchonete é minha caixinha de música. Eu não estava com fome, mas pedi um pastel, uma torrada e uma vitamina. Não estava com fome de verdade, mas seria capaz de morder a boca com duas colherinhas de açúcar. Era cedo da manhã e o dia me engolia em Alegrete (RS).
É que não resistia às garçonetes, ao coque de tricô das garçonetes, ao baile dos ninhos dos cabelos sobrevoando o ambiente como bandejas reluzentes. Quis colocá-las em movimento. Ansiava pelas suas nucas ligeiramente à mostra, que se aproximassem de mim para soprar seus cabelos. Apoiava o rosto entre os cotovelos para admirar a mecha desalinhada na testa; um charme da respiração; os fios desobedientes da touca recaindo sobre as sobrancelhas.
A garçonete é uma bailarina à paisana. O coque igual a uma bailarina em meio à bagunça dos pratos na pia, dos copos enfileirados, da chapa acesa. Ela não absorve o que está fazendo, não dá nome, mesmo sem nome é lindo. Se houvesse um diretor de balé chamaria o vaivém de adágio e derrubaria tudo com nomes franceses como développés, grand fouetté em tournant, grand rond de jambe e rond de jambe en l’air. Para decorar os movimentos, a jovem esqueceria os pedidos, perderia a espontaneidade, não seria ágil e leve justo pela consciência do palco.
Estragamos metade da beleza dizendo o que é e a outra metade dizendo o que não é. Não me resuma. O que é intenso não é prático. Confundo o que vejo com aquilo que desejo. Quem pretende comer numa lanchonete que seja prático, que pague e saia logo. Eu invento a fome para ficar.
Não sou prático, nunca gostei do porquinho Prático, o mais arrogante dos três, que demora a abrir a porta aos irmãos e exige desculpa. Faço a casa provisória de feno e de madeira, assim escuto melhor o vento.
As maiores ofensas são práticas, com o ímpeto de resolver logo e se despedir da conversa. Quando alguém tenta ser prático comigo, vem grosseria, vem falta de tato, vem preguiça impaciente. A praticidade é uma nova forma de ser sincero e falar sem pensar.
As mãos da garçonete se dobram como os pés da bailarina. Não troco minha distração pelo desinteresse. Os dedos esticados com força no balcão anotam meu pedido: um pastel, uma torrada, uma vitamina e o coque. Aplaudo com as pálpebras.
Crônica publicada no site Vida Breve
10 comentários:
Há lugares que a gente frequenta porque precisa e há lugres que a gente frequenta por puro prazer. Mesmo que tenhamos que inventar uma fome.rsrs. Abraços. Paz e bem.
Eu invento a esperança todo dia. Ela então se materializa. Gostei da poesia em sua crônica. Inté.
"A garçonete é uma bailarina à paisana..." Genial! E as pálpebras aplaudem também esse texto.
Bonito como um balé!
"O que é intenso, não é prático."
Lindo! Intensos são seus textos, têm profundidade!
Como não vir aqui mais vezes?
Sempre saio daqui olhando pra trás.
A magnitude do prender de cabelo:
http://william-gomes.blogspot.com/2010/07/pezar.html
Olá Fabrício!
Prazer visitar seu blog e ler esse conto muito bem desenvolvido. A analogia entre garçonetes e bailarinas é deliciosamente bem feita.
Não gosto de coques nem vitaminas, mas seu conto pra mim foi uma mulher de cabelos ondulados soltos me servindo um pastel com coca-cola.
Abraço!
Jura que você sabia os nomes de todos esses passos de balé? Lendo o texto deu a impressão de que você entende muito do assunto. :)
'Não me resuma. O que é intenso não é prático. Confundo o que vejo com aquilo que desejo. Quem pretende comer numa lanchonete que seja prático, que pague e saia logo. Eu invento a fome para ficar.' Muito bom isso.
Me declaro uma grande fã do seu trabalho,
parabéns, e continue por muito tempo com ele.
Um grande abraço, Larissa.
Cada vez te admiro mais...
Tua intensidade me encanta!
Beijos
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