sexta-feira, 5 de novembro de 2010

MÃO GRANDE

Arte de Paul Cézanne

Não tenho definido quando passei a usar desodorante. E meus pais viram que suava e fedia. Qual foi a marca? Não tenho certeza de quando usei a primeira vez a gilete no rosto, após surgir o bigode falhado que não era de vitamina. 11, 12 anos? Não conservo a convicção de tempo quando troquei sabonetes e loções infantis pelo xampu e o box virou uma farmácia. Ou quando comprei minhas roupas e não encontrava mais espaço nas prateleiras. Ou quando surgiram os pêlos pubianos e me envergonhei de cuidados. Ou quando comecei a trancar a porta do banheiro, do quarto, da frente. Ou quando me interessei por uma menina.

Não anotei metade dos acontecimentos da minha transição, não contei com álbum de fotografias e legendas que servissem de corrimão para a memória. Nunca confiei que teria uma biografia, já era complicado ter uma vida.

Entrei na fase adulta com a paternidade. Foi quando deixei de gritar. Italiano, gringo, passional, acostumado a chamar as pessoas da residência pelo berro, não importando a distância, conheci o sussurro. A conversa sussurrada. Algo inédito para meu biotipo agressivo. De modo nenhum, na adolescência, falava baixo para não acordar os irmãos, desejava mesmo é chamar atenção e levantar a família. Não gostava de tomar café da manhã sozinho.

Ao nascer a Mariana e Vicente, realmente me aquietei. Eu me despedi do desespero. A sensação é que a altura da voz é agora a do sangue. Não imponho o timbre, não ergo as vogais, descobri o quanto o sono deles é sagrado. Antes derrubava xícaras, batia o armário, pisava fundo. Agora sei furtar minha casa com competência. Roubo pertences de um aposento a outro com enorme talento. Pego as roupas sem estardalhaço, prendendo a respiração. Acredito que flutuo pelo chão, meu par sujo de meias são minhas asas. Escovo os dentes economizando o chapinhar da torneira, sento-me na sala com a escolta silenciosa da luz. Permaneço horas a fio com o ouvido de pé, como se controlasse todos os ruídos do telhado. O assoalho somente passa a existir depois dos filhos.

Maturidade é assistir com gosto um filme mudo, não pensar mais que o silêncio é um defeito. Se minha mulher desperta, nossa risada é feita de sopros e assobios, não é tão diferente do canto dos sabiás nos fios telefônicos. Somos pássaros ciscando as chamadas e os interurbanos. Não deixamos de fazer nada, mas sempre com imponderável discrição. Mexemos nas panelas e montamos o almoço pousando os pratos na mesa. Não há atrito entre os garfos. Não há um rasgo de metal no dia. As crianças acordam pelo cheiro da comida.

Despertamos os filhos no final de semana pelo olfato. É o nosso único barulho.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 135, Número 204
Novembro de 2010

26 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo!

Cleber disse...

Cara ........sensacional,e muito bom nos enchergar em coisas q lemos...hoje como pai,entendi um pouco mais de mim mesmo....

Marta disse...

É possível visualizar, tatear e quase sentir o cheiro de cada letra no seu texto - primoroso. Uma lição para quem se aventura em um blog escondido nessa calçada eletrônica.
Marta

Escritos disse...

Muito bonito!

Eloisio Albuquerque disse...

Adoro suas crônicas...
Sempre tenho ideias e uma reflexão positiva...
Uma alegria e animo me contágia...
Quero escrever... Quero gritar... Dizer... Sussurar... Falar aquilo que penso... Protesto singelo... Palavras ao vento...
Parabéns...
Acredito no poder das palavras
E que quando as palavras nos levam ao infinito pensamento...
Foram mais do que palavras...
Alcançaram seu principal objetivo, serem mensageiras e transportadores de ideias...

Rob Novak disse...

"Nunca confiei que teria uma biografia, já era complicado ter uma vida." São vidas complicadas que financiam boas histórias.

Uma crônica concebida no silêncio da maturidade. Muito boa.

Abraço.

Carlos Quadros disse...

Ótimo... realmente belo, adoro teus escritos...
Faço um convite para que visites o meu blog também...
http://seisvogais.blogspot.com/

Vampira Dea disse...

Passamos por várias fases sem perceber, talvez, seja a nossa condição para passar de uma para outra sem muitos danos, mas quando os filhos nascem é o momento que tudo passa por nossos olhos, como quando vamos descer a parte mais alta da montanha russa dá um medo ´mas é uma deliciaaaaaa.

Tania Aires disse...

Excelente a sua crônica! Como vc manipula maravilhasamente as palavras! Parabéns!

Suziley disse...

Belíssimo texto, uma crônica de um autêntico pai!! Parabéns, Fabrício!! Um ótimo final de semana :)

lídia martins disse...

Gosto da maneira como suas metáforas viajam acima dos cotidianos bombardeados. Meus pensamentos e eu fizemos um minuto de silêncio para memorizar sua pose de homem maduro. Não pude deixar de ouvir sua conversa com o pessoal do Fantástico. Tal qual uma serviçal atrapalhada em meio aos bastidores, confesso que fiquei bem no meio da trajetória temendo lhe derramar uma bandeja de mate quente. A parte difícil de seguir um profeta, é que depois de um tempo você começa a querer andar com o coturno vermelho dele. Logo mais o cajado, e, se possível, o casaco. Ainda que fique uns setenta centímetros mais largo. Deve saber que como escritor e jornalista você influencia milhares de pessoas. Tem tantos Carpinejares por aí. Eu como autêntica Carpinejete, venho sempre por aqui. Noutro expediente te ouvi dizer que: “MACHUCAMOS COM VOZ, MAS TORTURAR MESMO É COM O SILÊNCIO.” ENTÃO ACREDITEI. Não necessariamente nessa ordem profetizou: “O silêncio não é falta de assunto, é excesso de atenção. Quando qualquer palavra machuca.” ENTÃO DESACREDITEI. E agora diz que: "Maturidade é assistir com gosto um filme mudo, não pensar mais que o silêncio é um defeito." ENTÃO PIREI.

Lamentavelmente nunca deixei que ninguém me conhecesse por tempo suficiente para que me enterrasse por todo sempre num cemitério de mamadeiras e caçarolas. Mas nem de longe concordo com o fato de que a maturidade seja não pensar mais que o silêncio é um defeito. Tenho medo de me calar e as palavras acabarem morrendo em meus lábios, esfarinhando-se em sopros de sombra inclinados até não restar mais nenhum fio de voz para contar o que aconteceu. A falta de diálogo é uma enfermidade rara num um mundo, em que de resto, só a compreensão pode salvá-lo. E onde está a minha quando mais preciso dela? Vá saber! Deve estar em meio ao vespeiro que tomou conta do meu cérebro depois de ler este texto. Em que espécie de confusão está nos metendo profeta? Deviam inventar um plano de aposentadoria para os jovens que está deixando grisalhos. Acredita no que escreveu de fato? Se disser que sim, vou abrir a torneira de sua memória e deixar que a tese de MULHER PERDIGUEIRA escorra ralo abaixo. Lá nos ensinou que o silêncio é a ferrugem da alma poeta. Achei que a felicidade estivesse no estardalhaço dos pratos!



Um abraço desamparado!

Anônimo disse...

Na possibilidade de estardalhaços, o silêncio é a causa do amadurecimento? Caxias do Sul é frio em todos os sentidos, cara.

Adoro suas crônicas! Parabéns!

Juliêta Barbosa disse...

A felicidade está no silêncio... Mas, naquele que fala... Quantas coisas dizemos só com o olhar? E, que poder ele tem! As palavras! Ah, as palavras, elas contam tantas mentiras de amor. Gosto do silêncio, principalmente, quando ele me permite passar a vida a limpo e eu descubro que sentir é mais importante que falar. Nessa hora, o amor se torna tão maior...

Dalva M. Ferreira disse...

Deixa eu fazer um comentário decente, distinto da bandalheira (da ciumeira) que eu tenho feito até agora. Esse teu texto maravilhoso me lembrou imediatamente um poema do poeta venezuelano Miguel Otero Silva (1908-1985) chamado "Los Hijos" - e que fala justamente do casal de filhos dele, e que termina exatamente com a frase: se aprende a tener miedo". Antes dos filhos, o mundo é bem diferente. Parabéns, Fabrício, você é muy bueno!!! Tá: invejinha...

Anônimo disse...

Me deu vontade de ter filhos.

Isa G. disse...

Comprei a 'Mulher Perdigueira' e estou adoraaaando!!! Parabéns pelo seu trabalho! =) tem uma fã aqui no blog e no livro também! Beijos

Unknown disse...

Lindo isso! Mais lindo é poder "ver" a cena pela leitura.
Lá no meu blog tem um presente pra vc, o selo de qualidade chamado de premio dardo.
O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, e suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.

Passe lá( http://bit.ly/9azfWi ) é pegue o seu.

Abraços

Leandro Lima disse...

Sublime!

Unknown disse...

O silêncio e o sono são sagrados. Gostaria tanto que todos soubessem disso...

O psicolouco disse...

"Despertamos os filhos no final de semana pelo olfato."
Esse sim é o Fabrício Carpinejar.

Lis disse...

Escrevestes por mim,sou mãe de quatro filhos,vivi cada palavra, parabéns pela singeleza ao falar da
maternidade/paternidade.

Liliana disse...

Vc sempre me tira boas gargalhadas ou então somente me emociona, profundamente...

Gabriela Gomes disse...

Me emocionou de verdade. Bela atmosfera, linda confissão e "dar-se por conta". Falando nisso, me ocorreu que não li o teu "Meu filho, minha filha", acho que pode ser uma leitura pertinente para o meu momento. Irei em busca. beijoca.

Alma Exposta disse...

Encantada...
Quando eu crescer quero escrever igual a você...
Receba meus suspiros capichabas...

Diana Menasché disse...

Muito legal!
Dentre outras coisas, nunca tinha encontrado a expressão "tomar café da manhã sozinho" com esse efeito poético! Maneríssimo!

Milena Gomes disse...

Adoro seus escritos Fabrício! Genial :) E tu cita lindamente o amadurecimento pelo silêncio espontãneo e único. Quando nos sentimos bem e isso deixa de ser atormentador..isso é a verdadeira plenitude. Tempo atrás recebi muitas críticas de meus amigos, quando em um sábado à noite..eu estava assistindo um filme mudo...e BEM FELIZ! As críticas se devem ao fato de eu ter 23 anos...mas e daí? O silêncio pra mim é felicidade! Obrigada por nos presentear com palavras tão lindas e tão conscientes..um verdadeiro pai!