quarta-feira, 3 de novembro de 2010

VARREDORES

Arte de Cínthya Verri

Desço a rua Lageado, em Porto Alegre, as árvores ainda montam sua feira de frutas, a luz vem filtrada pelos galhos, o cheiro é de grama voada, a igreja São Sebastião é meu ponto visual para chegar à Protásio Alves, quase tudo igual a minha infância, menos as pessoas guardadas.

Há um recolhimento de madrugada em pleno sol. Não há mais ninguém varrendo a rua de manhã. A casa somente ficava limpa se a rua era varrida. A rua representava parte da residência. Uma extensão do pátio. Um corredor ansioso ao mundo. Antes das grades e das cercas eletrônicas, do pavor do assalto, a frente funcionava como sala de visitas. Recebia-se namorada nos cantos, o vendedor de enciclopédias e as representantes da Avon no jardim, os mendigos familiares e as campanhas de agasalho na escada. Os únicos riscos que apareciam no chão vinham do jogo da amarelinha e dos carrinhos de rolimã.

Não adiantava nada arrumar os aposentos, ajeitar a cama, lavar a louça, espanar os móveis, se não limpasse a calçada. Como usar roupa bonita com sapato sujo.

A maior parte dos vizinhos saía para se cumprimentar com sua vassoura de palha. Certo o encontro às 8 horas para reunir as folhas. Certo o falatório entre as braçadas firmes e ágeis. Os motoristas que passavam não interrompiam as fofocas. Achava lírico. Assim como os guris jogavam futebol de uma garagem a outra, os moradores conversavam de um portão a outro. Existia uma ordem imutável: o pássaro no fio, o gato na janela, o cachorro espiando no pátio e o varredor de cabeça baixa cuidando de seus domínios, disciplinado, nunca avançando no terreno alheio, amontoando os ciscos e gravetos num pequeno monte a São João.

Parece lenda, mas usávamos a rua como um cinto que apertava o muro, um cinto para a casa não cair no desleixo de um terreno baldio. As aparências se mantinham já na entrada. Quando as crianças iam para escola, os pais comentavam quais as vias mais transparentes de vento. Abria-se um pedágio informal da palavra, um controle asseado, uma vigilância dos serviços alheios. Calçada suja sinalizava doença ou divórcio. Minha mãe já entrava em polvorosa: “Coitado de Fulana, faz quatro dias que não recolhe as folhas. O que será que aconteceu?”

Desço a rua Lageado. Disputando corrida comigo, um vazamento desde o início da lomba, uma torrente de água branca e espumosa serpeando as pedras. Muito mais rápida do que meus passos. Não anseio soltar um barquinho de papel para ancorar no esgoto. Não é engraçado, é infinitamente triste. A água, como a rua, não tem mais olhos — não há quem se importe.



Crônica publicada no site Vida Breve

13 comentários:

TÂNIA CAVALHEIRO disse...

Revi minha infância em tua belíssima crônica...
Deu saudade de brincar na rua...
OBRIGADA!

ÁGUA: ainda vai ser mais cara que gasolina!

A cada dia te superas!
Como pode?

Eunice Pigozzo disse...

Oi, Fabricio....que bom começar o dia com essas imagens....adorei!Obrigada.....

Antonielson Sousa disse...

Tempo insano

Saudade da minha esmeraldina infância
Em que eu corria junto a meus velhos amigos
Chutando bola pelas terras misturadas com areia e pedra.
Saudade das vezes em que pulávamos como criança
No auge do princípio da mocidade.
Das vezes em que sorríamos como velhos irmãos
E ansiávamos para que a noite desse adeus
E o amanhecer abrisse a porta para um novo dia.
É esse tal relógio que não para de bater.
Sufoca a beleza impenetrável, que é a vida
E nos faz reféns num instante efêmero.
Não há nada que explique este momento insano,
Talvez por isso, chamam-nos de humano.
Seres capazes de suportar dores insuportáveis,
Aptos a adotarem o universo que seus pés tocam,
De sentirem reféns, como se diz,
Porém, valer-se de cada precioso segundo, para ser feliz.

Suziley disse...

"A rua não tem mais olhos", onde estão os varredores de outrora, não é mesmo?!! É uma pena mesmo. Parabéns pela bela crônica, Fabrício!! Bom dia, boa semana :)

Anônimo disse...

Incrível como dá para "visualizar" cada detalhe da rua descrito por você no texto... Triste que tenha mudado!

http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

Tania Aires disse...

Que maravilha! Parece mesmo que estou ouvindo o barulho das vassouras! Parabéns! Crônica perfeita!

Felipe. disse...

Sua crônica fez-me recordar o livro "A alma encantadora das ruas", de João do Rio. Há uma passagem nele que diz: "Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos."
É injusto o fato de a vida adulta ser tão longa e a vida infantil, que nos proporciona memórias tão puras e reveladoras da essência humana como essa, ser tão curta. Feliz aquele que mantém dentro de si a alma de uma criança.
Bela crônica!

Rob Novak disse...

Lembrei-me da calçada sendo varrida pela minha mãe, logo cedo, rente ao meu quarto. Esporadicamente, a vassoura batia na parede e o som moderado me acordava aos poucos, enquanto ela seguia limpando a calçada frente à casa. A primavera era recém chegada e o clima ameno me fazia começar o dia tão tranquilo quanto ele.
Com a calçada limpa é que o dia realmente começava. Para mim e para ela.

Bela crônica.

Vampira Dea disse...

Sempre bom ler sobre infância, a mente nos transporta, sentimos cheiros, sabores e o suor das corridas e aventuras, o aperto de mão dos primeiros amores. Uma delicia te ler.
agora se tiver curiosidade de ver como é infância de vampira rsrsr http://deaeomundo.blogspot.com/2010/05/crianca-flores-e-morte.html

Roberta Mendes disse...

Revisitar lugares tem sido mesmo assombroso... Há um descompasso entre a memória anti-corrosiva das coisas e a oxidação degradada da coisa quando revista. Sobrepõe-se a ferrugem sobre o fulgor da memória: nosso melhor metal. Arranha-nos a saudade com as pontas agora carcomidas.

Juliêta Barbosa disse...

Lendo a sua crônica pensei: é por isso que, até hoje, as ruas da minha cidade caminham dentro de mim e por elas passeiam a menina-moça que eu fui um dia.Percorro a passos largos de saudades por essas mesmas vias e não encontro mais os personagens de outrora... Só lembranças, saudades e as folhas de outono... Marcas de um tempo!Obrigada!

Anônimo disse...

Leio e releio suas crônicas incesantemente porque me identifico com tamanha humanidade, acho. Com as coisas que você fala sobre a vida, sobre os relacionamentos, sobre os filhos... Escrever também te ajuda a se auto-compreender? Falar dos outros também te ensina mais sobre coisas que você mesmo deve aprender?
Espero que, assim como eu, você escreva porque precise, porque é dependente disso. Das duas uma: ou eu também me torno genial, ou você, se desistir de escrever, tornar-se-á menos sábio. Só quem observa, pensa!

Dalva M. Ferreira disse...

Mudei muito de residência, na vida. Dentro de mim, assim, convivem retalhos de MG e de SP, mas todos eles têm infinita importância no desenho final do que eu sou. E do que não sou mais, principalmente. Belíssimo texto, Fabrício, ainda estava ruminando do teu "corrimão para as lembranças". Invejinha...