quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O BIGODE AMARELO DE FLAUBERT

Arte de Cínthya Verri


Primeiro do ano de 2011, larguei o cigarro, pela segunda vez. Há a teoria de que a abstinência vinga na quinta tentativa.

Estou me adiantando, não sei se conseguirei ou repetirei o fracasso. Antecipo desculpas. Não é fraqueza, é covardia. Não tento ser melhor do que sou, só procuro não me piorar.

As noites têm sido infernais, infantis, sonho que roubo baganas do lixo. Até no sonho não posso mais fumar.

Gemo, grito e desaforo, apesar do adesivo e do Diazepam.

Apresento baqueteamento digital (meus dedos viraram baquetas), o primeiro sinal de enfisema. Meu avô materno morreu exatamente disso.

Careço de oxigênio no corpo. Fui um asmático que zombou das estatísticas. Agora tenho a consciência de que não serei a exceção, não escaparei ileso como acreditava, Deus não me protegerá, não vale invocar exemplos como o de Mario Quintana que ultrapassou os 80 anos disfarçando seus suspiros.

Poetizar o cigarro não perfumará o cadáver.

Não adianta mais justificar que ele era meu aparelho de dentes, a gola rolê do rosto, meu fog londrino, minha adolescência, minha barba ruiva, meu mistério, o elevador da respiração.

Não adianta alegar que ele me amadureceu, me enturmou, me arrumou namorada.

Não adianta insistir em desvairadas fantasias, de que ele ocupava as mãos, ajudava a escrever.

Humphrey Bogart, Joyce, Sartre, André Gide e James Dean não estão aí para me emprestar fogo, meus fiadores morreram.

Verdade seja dita, o cigarro não preservava minha timidez, cultivava minha insegurança (a timidez costuma ser segura de si).

Tornava-me ainda mais agressivo. Retirar o cigarro de mim é como roubar, a cada cinco minutos, o osso de um cachorro.

Tampouco curava minha ansiedade, ficava bem mais nervoso. O cigarro cria nervosismo para nos iludir em seguida de que nos tranquiliza.

Ele é a própria ansiedade. Estava numa conversa e me desligava do assunto para planejar a saída. Eu fugia com frequência de mim pensando que fugia dos chatos.

Não gostava de viver, gostava de fumar. Não dá para fazer os dois. A gente descobre isso quando para.

Não vou me consolar com atenuantes. Um dos erros é negociar com o terrorista. Não posso pedir para descartar os cigarros inúteis e manter somente os fundamentais: aqueles do despertar, do almoço, da janta e do sono. Sinto falta de todos os cigarros. Para falar ao telefone, necessitava fumar. Para sair, necessitava fumar. Antes do cinema, necessitava fumar. Depois do sexo, necessitava fumar. Depois e antes de tudo, necessitava fumar.

Por isso, fumar um é fumar novamente todos. Não é brincadeira. Não há meio-termo.

Se acho triste me desfazer dos meus doze isqueiros engraçados e dos cinco cinzeiros extravagantes, mais triste é se desfazer de mim.

O que me apavora é o alto grau de dependência. Sou uma reunião de condomínio de 4.700 substâncias tóxicas. Definir o elemento que me magnetizou é tão complicado como desvendar a origem de uma alergia.

Guardava uma tabela periódica na boca. A nicotina é a menos perigosa. Será que tenho saudade da acetona: usada para remover esmalte? Ou da tirebina: substância que dilui tinta a óleo? Ou do formol: conservante de cadáver? Ou da amônia: desinfetante para pisos, azulejos e privadas? Ou da naftalina: eficiente para matar baratas? Ou do monóxido de carbono: o mesmo que sai do cano de descarga dos automóveis? Ou dos agrotóxicos usados no cultivo da folha de tabaco? Ou dos metais pesados: encontrados em baterias de carro?

Duvide das facilidades, da força de vontade, do poder da mente. O alcatrão é fundo como um trauma. E delicioso.

Consumia quarenta cigarros por dia e respondia que tinha sido vinte. É simples descobrir a realidade do fumante: duplique o que ele confessa e chegará ao número preciso.

O fumante é mentiroso — eu mais do que os outros.



Crônica publicada no site Vida Breve

41 comentários:

Anônimo disse...

Eu nunca vejo defeito nenhum no que vc escreve! A gente lê como se tivesse andando de carro por uma estrada tranquila.
Gracias por isso!
Tatibitati

Anônimo disse...

"Sou uma reunião de condomínio de 4.700 substâncias tóxicas"

e eu vivo a dimunir a quantidade de cigarros diminuídos diariamente. cada pessoa ouve um número. realmente, somos uma farsa!

fantásticos seus textos. alegria ter conhecido aqui! :)

Aline Roque disse...

Larguei meus 40 companheiros diários há 2 anos e 4 meses. Acredite, o primeiro mês é o pior... depois fica mais fácil. O antigo amigo das horas de ansiedade nunca é esquecido, não importa quanto tempo passe. Mas a vida é feita de escolhas... escolhi a vida (do meu filho também) e por mais doído que seja, não me arrependo. Com força de vontade e paciência alheia (pra aturar o mau humor por um tempo), aos poucos tudo é superado.
Abraço e boa sorte!

O Neto do Herculano disse...

Paro de fumar todos os dias.

João Sogabe disse...

É sempre uma luta, consegui ficar quase 3 meses sem um cigarro mas a tentação ganhou.
Minha única vitória nesses últimos tempos foi a diminuição da quantidade, se é que isso é uma vitória.
Mas força nessa sua nova tentativa!

Anônimo disse...

Parei de fumar após uma única sessão de acupuntura laiser. Quatro anos depois voltei por ter brincado com a sorte. Mais uma vez, anos depois de ter voltado, fiz nova sessão de acupuntura e parei novamente. Preciso dizer que eu realmente queria parar e acho que isso ajudou o sucesso. Recomendo. Fiz na Action Laser, mas acho que deve haver outros locais. Abraços a todos.

Anônimo disse...

de quando em vez... é bom passar a perna e si mesmo... rs até!

Ju Farias disse...

Eu tentei parar de fumar por cinco dias. Nos três primeiros tirei de letra. No quarto queria socar alguém e no quinto queria socar a minha cabeça por ter desistido de tudo e pitado mais uma vez.
Eu tenho um caso de amor com o cigarro. Ele me acalma quando estou nervosa, me acompanha na cerveja e quando bebo demais, ele é tão legal que resolve dar um tempo e me deixar sozinha na recuperação, nem que seja por algumas horas. Além de tudo isso, ele acorda ao meu lado e me dá um beijo todos os dias antes de adormecer. Não bastasse esses carinhos, é ele que eu agarro logo depois de uma boa transa. E de uma ruim também.
Eu tenho um caso de amor com o cigarro.
Eu tenho um caso de amor com o diabo.

Beijos, Carpi!

Getúlio disse...

Muito de vez em quando fumo um para matar aquele vontade ou dô um trago no de um conhecido, mas o diário já são uns 4 meses sem.

Buba Lima disse...

Muito bom! Excelente mesmo! Na verdade tudo o que escreves é excelente, embora seus textos sempre me dão uma porrada na cara! Primeiro, porque sempre me veste a carapuça e segundo porque morro de inveja de não saber Carpinejar! kasademaejoana.blogspot.com/

Marcia Toito disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
¿ disse...

Saudações.

O pior de tudo são as falsas compensações, do tipo:" Só vou fumar quando for a praia!",
passado algum tempo, não se faz outra coisa senão ir à praia...

PS:"(...)roubo baganas do lixo."
Acredite isso é efeito da ebstnência, pois só quando se está nesse estado de 'semi-sonho' da abstnência é que se pode roubar baganas...


Abraço.

Taís disse...

Bom, pode parecer meio patético, mas quem fuma sabe que o cigarro é seu companheiro de todas as horas. Sejam boas ou ruins, ele está ali, ao alcance da mão, pra celebrar ou acalmar a gente.
Quem sabe um dia eu tenha a força de vontade ou somente a vontade de parar de fumar. Por enquanto não quero me expôr ao stress.
Boa sorte e muita força!
bjos

Eliane Ratier disse...

pelo sim e pelo não, boa sorte!

Vital disse...

ora essa meu caro Cronista, você está sendo reducionista, existem muitos tipos de cigarros e fumantes. Não diminua o ato de fumar que é muito mais nobre que o fumo que você escolheu só porque homens engravatados decidiram que esse era legal.

. disse...

Eu não fumo, nem nunca fumei, mas admiro e me identifico com mentirosos dizendo a verdade.
Bonito, verdadeiro e tocante - até pra quem não tem relação nenhuma com o cigarro. Me deu a impressão que essas verdades todas eram piores dentro de você do que agora, pra quem lê.
"poetizar o cigarro não perfumará o cadáver"!
É muito mais cheiroso o que escreve agora! Beijos!

Poeta da Colina disse...

Escrevemos, mas nem sempre nos convencemos. Há coisas que só se decidem por dentro, em algum silêncio.

Rafaela Gomes Figueiredo disse...

Porque, para todo pensamento, é necessário oxigenar...


[*Te falar... que nunca curti o que tu escreves. Nunca soube o porquê; respeitava, claro: não é possível gostar de tudo/todos, né? Mas deste texto eu gostei. : ) Descobri o blog por acaso - aliás, pelo blog d'uma amiga - e espero voltar mais.]

Abraço.

Josie disse...

Parei por trÊs mesês no ano passado, mas acabei voltando. No inicio deste ano (que tem apenas 5 dias Ôo) fiz acupuntura a laser tambem na action laser como o tocadopaulo, mas não adianta, o melhor método para parar de fumar é a força de vontade, que está em falta no momento. E eu que achava sensual fumar ¬¬
Teu blog me foi apresentado recentemente e já estou adorando.
Parabéns.

ana disse...

Descobri que é mais difícil parar, para as pessoas rebeldes, que não gostam de se submeter à regras
(leia-se regra dos que acham que é necessário parar), embora seja um vício que te mantém submetido, mas que os fumantes acham que é uma escolha... Dá para entender este paradoxo ?
Quem entender consegue parar.

Anônimo disse...

Esse blog e um dos meus cigarros.... Eita vicio bom!

ricardo f. silva disse...

"poetizar o cigarro não vai perfumar o cadáver"

Yeah!

BsVoxx disse...

Nunca Fumei ... Não sei porque meus namorados quando começam a me namorar comigo param de fumar ... é o que o atual está fazendo! Risos.

"Sou uma reunião de condomínio de 4.700 substâncias tóxicas" para mim foi a melhor
frase de todas ... traz de uma forma cômica a realidade.

Gostei muito de todo do post!

Lu Ricas disse...

Não gostava de viver, gostava de fumar. Não dá para fazer os dois. A gente descobre isso quando para...
Cara....lindo!

Anônimo disse...

Coisa linda. Força nessa fase - que pode durar o mesmo tanto que você.
Vez em quando ainda sonho que fumo e acordo com remorso. Estou na rehab da culpa.

Rob Novak disse...

Ótima crônica.

Sempre achei estranho esse vício de inalar fumaça. Passei a ter nojo dele após trabalhar como recenseador no interior de SC e presenciar famílias inteiras, mulheres e crianças, com camisetas amarradas no rosto despejando puro veneno nos pés de fumo. Sem luvas e com botas e roupas inapropriadas elas passavam o dia a pulverizar pesticidas, herbicidas e pouco a pouco suas vidas na lavoura que fede desde o início. Relatei essa e outras experiências como recenseador em vários textos no meu blog, se quiser, e puder, le-los, fique à vontade em passar por lá.

Parabenizo sua determinação em abandonar o cigarro e procurar viver com mais saúde.
Não há glamour em se envenenar.

Abraço.

Anônimo disse...

Só três palavras: pare de fumar.

Roberta Santos disse...

Faz pelo menos 4 anos que o meu estado civil é "parando de fumar"...kkk... Diminuí, teoricamente, para 3 cigarros ao dia, mas sei que são o dobro disso, pelo menos. Um vez li, não sei aonde, que na primeira tragada que se dá na vida, teu cérebro se transforma e nunca mais volta a ser como era antes. Acredito mesmo!!! O vício não tem cura, vamos lutar até o fim da vida para nos livrar dele e/ou carregá-lo conosco escondidinho na bolsa... nunca se sabe...
Adoro teus textos!
Abração.

ana disse...

acho que é mais uma quetao de personalidade do que de vício. Quanto mais uma pessoa é flexível em suas opinioes, mais ela tem autonomia sobre o seu hábito ou comportamento. Para você talvez seja mais fácil do que imagina, pois você nao demonstra ser um cabeça-dura

Anônimo disse...

Cigarro, um amigo presente que testemunha todos os pensamentos e atitudes. Dispõe-se como um sofá a queimar, escutando alto, baixo ou em silêncio, queixas, confissões e lamurias. Companhia gostosa e distraída, que aquece os lábios, invade a boca como um bom e doce beijo, se aconchega entre os dedos, equilibrando seu fim no sincero ou desastrosamente no chão. Disfarce do bem, que em longo prazo rouba a saúde sem perceber no mundo da inocência consciente. Amigo que além de pagar para manter a amizade, deixa manchas pulmonares, sufoca os espaços respiratórios, apelidos, cáries, aromas desagradáveis, e o pior, patologias que mostram o fim do viver. É o tipo do amigo que se você não procurar jamais te encontrará. Fabrício mesmo que esse amigo acesso ou não te rodei tenha sempre aposto o escudo do não. Seja mais forte que ele, substitua pela coragem do abandono. Que em 2011 você e tantos outros, que se promete e prefere-se, mais que a ele consiga romper os laços dessa amizade.
Margareth.

Jozi Elen Fleck disse...

Tudo que vem de ti é de doer.
Abraço apertado.
Jozi
O Lugar das Cores escritas

Maria Cláudia Cabral|Aika disse...

Talvez o melhor. Despido assim diante das leitoras e leitores, és ainda mais admirável escritor. Quisera poder compartilhar esse teu texto em todas as redes sociais das quais participo.
Persevere. Um dia de cada vez. Não queira parar para sempre, só por hoje já é tempo suficiente. E a promessa se renova a cada novo amanhecer. E a cada ocaso, uma vitória para fortalecer o desejo de saúde.

blanche disse...

faz anos que todos os dias a única coisa que passa pela minha cabeça e não sai é minha relação com o cigarro. todos os dias pensando em parar, todos os dias sorrindo gloriosamente por uma autosabotagem, todos os dias sentindo o fracasso eminente de uma tentativa sem força. da onde tirar forças? para que ter forças? um dos pensamentos mais recorrentes que tenho quando avalio a situação é de que a vida já é muito dura, que é impossível viver todos os dias "limpo". no fim, tudo que sei é que é muito triste o pensamento mais constante, mais fixo na cabeça, ser sobre cigarros. tanta coisa para pensar e eu a divagar sobre canudinhos de tabaco. e bem, concordo inteiramente sobre ser impossível viver e fumar. são coisas opostas. fumar é uma coisa meio sado, sabe? você tem aquele prazer gigantesco oriundo de uma dor sem classificação. não sei do que tenho mais saudades: se quando fumava sem culpa ou de quando não fumava. mas bem, essa segunda eu já nem me lembro, visto que tenho mais anos de fumante do que de não fumante.
além de tudo isso, com a mania de poetizar e simbolizar tudo na vida, fica difícil decidir qual é a metáfora certa a se aplicar: jogar o maço vazio como sinônimo de fim por ausência ou jogar o maço cheio, como sinônimo de desistência.
poderia me extender por horas aqui, visto que na cabeça de um fumante inveterado, tudo é fumaça.

o refúgio disse...

Tenho visitado teu blog e curtido um bocado teus textos. Tanto que acho que estou me tornando uma Mulher Carpinejeira...rs...
Beijo :)

Anônimo disse...

Oi Fabrício e leitores deste blog, sou Margareth e ao postar meu comentário notei que grafei uma palavra errada que talvez não tenha dado sentido à frase. Peço desculpa a todos e assim corrijo: Companhia gostosa e distraída, que aquece os lábios, invade a boca como um bom e doce beijo, se aconchega entre os dedos, equilibrando seu fim no cinzeiro ou desastrosamente no chão.
Margareth.

Marcelo disse...

Cara,
impressionamente como consegue pegar uma luva e, sem mesmo vesti-la, dar um tapa com a maior sutileza e agressividade gauchesca.
Parei há 18 dias e decidi que nada tomaria (nem adesivo, nem chicletes, nem bupropiona, nem acupuntura). Apenas autocontrole.
Percebi que meu cérebro nunca largaria o cigarro. Minh'alma teria que ser mais forte e assumir as rédeas.
Faz 18 dias, mas parece que faz 3 meses.
Agora sem camisa fedida. Apenas o cangote cheiroso.

Parabéns Fabrício: sabes colocar nossas 26 letras em ordem fabulosa!

Eggle disse...

Fabricio........Voce é D +++!!!
Conectado cósmico!! rsrsrs

Eggle disse...

Fabricio...Sobre o cigarro...O amor não substitui?!!
Voce parece ser tão amado e amr tanto!!??
Me solidarizo contigo seja no que for!!!
Porque sinto a Luz em voce!!!

Jane Alvares disse...

Eu parei de fumar há 7 anos. É muito complicado. É preciso ter muita força de vontade e consciência de que não vale à pena.

Maria Tereza disse...

Como mulher te digo: melhor coisa que fizeste na vida foi largar o cigarro!!!! =)

Leonardo Climaco disse...

Sei que é irrelevante, tendo em vista o prazer que é ler os seus textos, mas a substancia que dilui a tinta a óleo é a terebentina e não tirabina.
Abç