quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CACHORRADA

Arte de Cínthya Verri

Escova de dente é um item de higiene particular. Seguia na merendeira da escola, ao lado da toalhinha de rosto e avental bordados, com o nome do dono colado com durex. Poderia emprestar pente aos coleguinhas, escova nunca.

Mas vá explicar privacidade a um irmão.
° ° °
A mãe confundia a partilha, obcecada por harmonias invisíveis (combinava a tonalidade da esponja com os ladrilhos do banheiro ou da toalha com o sabonete).

Ela comprava quatro escovas azuis: turquesa, marinho, calcinha e petróleo. E avisava aos quatro filhos de igual forma:

— Sua escova é azul.
E deu! Sem nenhum parêntese, detalhamento, explicação das diferentes matizes.

Qual azul: a forte, a fortíssima, a fraca, a fraquíssima?

° ° °
Acabávamos descobrindo tarde demais que a nossa escova servia a dois senhores ao mesmo tempo, a dois homens, um marido e um amante. Havia indícios contundentes: na primeira escovação do dia, ela continuava úmida. No momento do almoço, surgia estranhamente no box do chuveiro. Não parava no lugar que deixávamos.
° ° °
Não me importava em dividir as cáries, não tinha nojo de mim, mas Rodrigo sim, até porque não usava aparelho como eu. Ele fazia careta quando guardava a minha dentadura de adolescente no estojo.

° ° °
Acho que tomei sua escova sem querer. Complicado definir o corno da história, e quanto tempo demorou o caso.
° ° °
Com as suspeitas, o mano pirou, a ponto de diversificar esconderijos e me perseguir. Eu entrava no banheiro e ele batia na porta, pedia para entrar; um inferno, sempre no meu pé, sempre me controlando, ferrando meus devaneios com as revistas eróticas.

° ° °
Sua vigilância se transformou em doença. Colocava pimenta, catchup e mostarda nas cerdas, tudo para me prejudicar por tabela. Desejava me pegar em flagrante e me denunciar aos pais.

° ° °
A guerra fria durou de 1980 a 1983.
° ° °
Não suportava seu ciúme. Com a mesada, adquiri uma escova vermelha para me diferenciar.

° ° °
Em seguida outras cores apareceram no copo terminando a ditadura materna.

° ° °
Tristeza é azar. Na hora de lavar o nosso cachorro e limpar sua boca, apanhei uma escova amarela, velha, guardada no fundo do armarinho.
° ° °
Não tinha como saber que aquela escova era do irmão, disfarçada de suja para prevenir meus ataques.

° ° °
Ele dividiu a escova com o cachorro por alguns meses.

° ° °
Meu irmão ainda me odeia por isso.
° ° °
Fui visitar sua casa no interior do estado. Ao procurar lenço de papel, encontrei uma gaveta inteira repleta de escovas de dente.

Mais de cinquenta, ele que não é dentista e não trabalha como representante comercial.

° ° °
Eu me senti todo culpado.







Crônica publicada no site Vida Breve

19 comentários:

Anônimo disse...

É incisiva essa crônica de
quando você era dente de leite.
Gostei da parte do canino
que foi (a)molar seu irmão.
Que falta de siso, menino!
Merecia levar uma escovada!
Dente por dente.

Lai Paiva disse...

Adorei. Acontece nas melhores e piores famílias. Bj

{ Scrappiness } disse...

Hahahahahahaha, amei!! Eu também sou possessiva com a minha!!!
Beijos!!

Rodrigo Santos de Souza disse...

ri muito aqui no trabalho, não pode ser verdade isso.

hauhahua traumatizou o irmão.

Alice Mânica disse...

Eu e meu marido compartilhamos o "porta escovas de dentes" e vez por outra confundimos as escovas. Adorei a crônica!!!

Unknown disse...

Ótima crônica! Comum mesmo nos dias atuais, quando percebo um ou uma colega da minha filha vir dormir aqui, para os jovens, é muito normal isso. No carnaval, então.

Eles serão pais diferentes na higiene. E se falar, respondem> Mas não vai lavar?

Fico sem resposta e escondo a minha.

Beijos

Mirze

Heidi disse...

Poverelo!!!!!

Gisa disse...

Mais cachorrada que usar a escova de dentes do irmão no cusco eu não poderia conceber. Um mestre na arte de atacar o irmãozinho. Parabéns.
Um bj

Daniele Lopes disse...

HAHAHAHAHHAHAHAHA

Muito bom !

Eu e minhas irmãs também já compartilhamos escovas " amantes " !!!

Bons tempos aqueles ....

Abraço !

Euspereira disse...

Eu e minha irmã tínhamos desavenças com copos de Geleia de Mocotó. Ela preferia os com a borda "gordinha", e por isso ficava uma fera quando me flagrava com eles. Até hoje tenho medo desse copo.

Mima disse...

KKKKKKKKKKKKK

Ri muito! Bom demais!

Camila Castro disse...

Acho que todos os irmãos têm uma história parecida, haha. Adorei!

Unknown disse...

vi tua reportagem no ja...gostei muito,ja virei seguidor...http://renildoalbino.blogspot.com/
um abraço e sucesso

Heidi disse...

Pra variar, boas risadas e ótimas dicas no Jornal do Almoço...rsss..."ele" ja disse nada tres vezes hoje, o que eu faço? kkkkkkkkkkkkkkkkk!!!!!
Bom findi pra vc e pra tua familia!!!!!!

Josiane Santos disse...

Que ótimo poder compartilhar deste teu Dom de fazer rir e chorar...A pouco tempo lia na Revista Marista "Felicidade não tem fim tristeza sim" e me derreti com a beleza de ter filhos e agora Bom de mais rir da alegria que é ter irmãos! Grande abraço,

Dalva M. Ferreira disse...

Cachorrada mesmo!

Gabriela Guimarães Cavalcanti disse...

Que dó do teu irmão. Adorei o trama, como sempre muito carpinejético.

Paulo Duque disse...

Muito, muitíssimo bom, meu amigo. ^^'

.cereja disse...

Tudo real!