Arte de Cínthya Verri
Na discussão de relacionamento, as aparências enganam. Quem grita muito não deseja brigar. Quem fala baixo gosta de brigar. Mariano é do segundo grupo, adepto silencioso da rinha: suplica para a mulher se recompor e baixar o volume. Seu jogo é psicológico. Põe fogo no circo e senta para assistir o espetáculo da plateia.
A impressão é que a Selma grita sozinha: a voz dele nem aparece.
A falsa calma de Mariano irrita Selma. Mas a irritação de Selma passa da conta e apavora Mariano. Não há santo naquele lar. Ambos sabem que não estão certos, mas tramam um jeito de convencer o parceiro de que ele é que está errado.
Ele não descansa sem fazer as pazes. Ela odeia paz forçada. Nenhum cederá: os vizinhos é que sofrem.
Formam o famoso casal problema do prédio. Todo edifício tem um. A reunião de condomínio é dedicada às últimas peripécias do apartamento 201.
No início do ano, a vizinha de cima bateu à porta da dupla. Antes fosse para pedir sal ou açúcar.
— Desculpe incomodar, tenho uma filha pequena, não estamos dormindo de noite, vocês podem gemer mais baixo?
— Como? — Mariano atendeu.
— Dá para ouvir tudo pela nossa janela.
— O que sugere? Que use travesseiro no rosto? — ele ironizou.
— Não sei mais como explicar a minha filha, avisei que eram gatos no telhado.
Episódio mais grave ocorreu em maio. Mariano e Selma não são mesmo calmos. O que esperar do encontro de orgulhosos, ciumentos, temperamentais?
Óbvio que uma carta de notificação da imobiliária, ordem para se comportar senão seriam obrigados a pagar multa.
— Pô, Selma, não podemos transar nem brigar na própria casa.
— É o fim da liberdade, amor. E o síndico desrespeita a lei do silêncio no domingo para apressar a reforma do corredor, né?
E se abraçaram e viveram em paz mais três meses.
Na última semana, após troca de insultos, o interfone do 201 apita:
— Soldado Amauri, Brigada Militar…
— Vizinhos desgraçados… — desabafou Selma.
Duas viaturas estavam estacionadas na entrada do prédio.
Eles pararam de discutir na hora, cheios de cumplicidade.
— Quando roubaram o nosso carro na garagem, à mão armada, nenhum carro da Brigada Militar surgiu, Selma. Nenhum!
— Mas para apartar uma briguinha, a corporação envia não somente um veículo, mas dois, Mariano.
— Querem nos separar.
— Nunca vão nos separar!
Nada melhor do que uma injustiça para desencadear a reconciliação.
O casal desceu de mãos dadas, envolvido em longos e acalorados beijos. Os policiais ficaram constrangidos diante de tanto amor e se retiraram.
Crônica publicada no site Vida Breve
8 comentários:
Lindo! Lindo!
Mas sobre essa história dos gritos, Helder Câmara falava que a gente nunca quer que o coração do outro fique longe do nosso. É por isso que a gente grita com quem ama, às vezes. No meio da confusão, quando a gente sente que o coração do outro se afasta, a gente grita para que ele nos escute, e volte, se aproxime outra vez...
Pena que o coração assustado talvez se afaste mais. Mas acho que é mesmo isso. Quem grita não gosta de brigar.
Quem grita quer por perto...
Saudações, Fabrício!
Meu namorado (hoje marido) morava num prédio em que o síndico fixou uma circular no quadro de avisos solicitando que os moradores evitassem os ruídos sexuais noturnos. Não sei se essa seria mesmo uma medida cabível, mas a verdade é que nas madrugadas se ouvia de tudo por lá. Falei sobre isso recentemente no meu blog, numa crônica sobre outros tipos de ruídos - os sanitários. Quando tiver um tempo, passa lá (http://www.giovanadamaceno.com/2011/07/ruidos-sanitarios.html).
Abração!
rs... me sinto uma Selma da cabeça aos pés. hahaha
Adorei o "por que amo minha mulher?" tbm. :)
kkkkkkkkkk! Muito bom!
Nada como o ataque de um lado para que a conciliação surja entre os atacados visando o contra-ataque.
Um bj, sem briga.
Muito bom. Adorei o diálogo com a vizinha.
Cada vez que o leio mais, mais me torno sou leitora assídua. Adorei a crônica! Muito!!!
Maravilhoso !!!!
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