Arte de Cínthya Verri
Pedro imaginou que seria emocionante viajar de Porto Alegre a Buenos Aires de carro. Vinte horas e a possibilidade de casar os dois pampas: o pampa e la pampa.
Ao atravessar a Uruguaiana, raciocinou que a rodovia em obras fosse um trecho. Uma breve e momentânea correção no asfalto.
Dez quilômetros, vinte quilômetros, cinquenta quilômetros, setecentos quilômetros e a construção e o estreitamento da pista não terminavam.
A Rota 14 não existia mais, estava sendo totalmente refeita. Pelo menos, suspirou de satisfação ao acompanhar a profusão de barreiras rodoviárias portenhas.
— Nossa, quanta segurança! — pensou.
Admirou a elegância do uniforme dos guardas: o colete, o quepe, as botas.
— Menos mal, estrada difícil, mas segura.
Até que uma blitz sinalizou que estacionasse no acostamento.
O policial argentino se aproximou. Disposto, Pedro já sacou a carta verde, a autorização da financiadora, a carteira, o registro do carro, orgulhoso de cumprir a lista obrigatória de exigências da fronteira.
— Desce do carro!
— Olá, tudo bem, o que houve?
— Você não estava com farol aceso.
— Não sabia que era necessário usar durante o dia.
— Sim, aparecia nas placas.
— Já entendi, serve como advertência e vou corrigir a partir de agora.
— Não, tem que pagar multa de 600 pesos.
— Tudo isso?
— Ou o dobro na hora de sair do país…
— Senhor, não é tradição no Brasil, eu desconhecia a regra.
— É a lei.
— A multa não deveria ser enviada ao meu endereço?
— Não, caso não pagar neste momento não terá permissão de deixar a Argentina.
Pedro quitou os 600 pesos, com a impressão de injustiça. Seguiu o percurso, perdoando o desconforto, a série de pedágios, o gasto desnecessário.
— Ok, foi uma exceção, uma onda de azar.
Para pensar positivamente, entrou no posto YPF. A gasolina argentina é muito melhor, tem o triplo de rendimento, em especial a Super, de 95 octanos, e a Fangio, de 97.
Ele se enxergava fazendo um bom negócio; restaurava as vantagens da viagem. Mas, no retorno à pista, foi apanhado por outra blitz.
— Desce do carro!
— Olá, tudo bem, o que houve?
— Está com luz alta.
— Vocês pediram.
— Nós? Quem?
— Vocês, a polícia argentina, há meia hora.
— A lei pede luz baixa, ela está alta. Você será multado.
— Quê? De novo?
— Foi por problemas diferentes.
— Não, é o mesmo.
— Não ouse discutir com autoridade. Seiscentos pesos! E agradeça que o argentino paga 1.500 pesos.
Não demorou para que ele fosse parado pela terceira vez. Já estava louco para dizer que Maradona nunca seria melhor do que Pelé, trancou a voz nas obturações; afinal, estava de férias, não poderia se estressar, recomendações médicas, risco de infarto, coisas da velhice.
— Desce do carro!
— Para quê?
— Como?
— O que aconteceu?
— Está com farol aceso.
— Mas é luz baixa, olha aqui…
— Pois não se pode trafegar neste trecho com farol aceso, é proibido.
— O que pretende fazer?
— Multa de 600 pesos.
— Quê? De novo? Já recebi duas multas em menos de duas horas.
— Foram em trechos distintos, é a lei, desculpa.
— Desculpa? Nem entrei em Buenos Aires e já perdi mil reais.
— Porque não cumpriu a legislação.
— Vocês mudam de opinião a todo momento. Parece romance de Macedonio Fernández.
— Leu Macedonio Fernández?
— Sim, já li.
— Então, a multa é de 900 pesos.
É óbvio que Pedro sou eu. Fiquei com vergonha de meu próprio nome.
Crônica publicada no site Vida Breve
11 comentários:
A pouco falávamos aqui no trabalho sobre histórias de roubo e extorsão a brasileiros em Buenos Aires. Diferente do Brasil, a gatunagem lá é bem vestida e estilosa. Se forem lá não esqueçam, é Argentina não é Europa.
"É óbvio que Pedro sou eu. Fiquei com vergonha de meu próprio nome." (Hahaha! Você é uma figura!)
Tive essa sensação no mercado de Guayaramirim, na Bolívia, semana passada! Tudo bem que não perdi muito dinheiro, mas me senti meio explorada. kkkk. Ê vida...
Essa história é o que podemos definir como
"dançar um tango e ficar na tanga".
Meu pai foi uma vez até a Argentina. Estacionou em local proibido (por eles). Teve o carro lacrado. Jurou nunca mais pôr os pés lá.
Semana passada estive em Posadas-Misiones e os Policiais nos multaram ...tivemos a "sorte" conseguimos negociar...dos R$300,00 que nos pediram consguimos baixar para R$100,00...é vergonhoso....
Macedonio Fernández... pode nos indicar um livro dele, por favor ? Gostaria de conhece-lo mas nao sei por onde... =)
Acabou de sair Museu do Romance da Eterna pela editora Cosanaify. Uma boa dica. abraços Fabro
Estou vivendo em Buenos Aires e já senti na pele isso, uma vez, indo pro Brasil quando passava na imigração. Disseram que o meu visto estava vencido (em menos de 3 meses!) e que eu tinha que pagar não sei quantos pesos pra sair do país.
Se eu pudesse, teria saído e nunca mais voltado!
Oi Fabrício!
É a minha primeira vez por aqui...comecei a te seguir no twitter e gosto do que você escreve por lá. Fiquei curiosa em conhecer seu trabalho. Por qual livro devo começar? rs Abraço
Já ouvi outros relatos sobre a corrupção da polícia argentina. um desastre!
Fabro, há algum tempo não passava por aqui e me deparo com uma situação muito parecida com a que passei nesse lindo caminho POA/BUE.
Pelo jeito, em 5 anos, nada mudou. Como fui alertado por um "nativo", já levei troco para eles. Na épora eram 467,00 pesos (nunca vou esquecer!). Chorei como um milongueiro, lembrei das tragédias em tangos, lembrei da mãozinha santa do Maradona... e soltei minha veia teatral.
Resultado... paguei 20,00 pesos. Outra hora te conto outras que aprendi com los hermanos...
Abraço
Sílvio
miniminimos.blogspot.com
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