A estratégia é simples, mas funciona: vendendo cada doce a R$ 9, seguido Hilberto fica com o troco pela simpatia. Foto de Tadeu Vilani |
A vida é dura como um pé de moleque, mas no fundo é doce.
Esta frase só tem sentido na boca de Hilberto Helvino Von Frühauf, 76 anos, morador de Victor Graeff, município de 3 mil habitantes, situado a 263 quilômetros da Capital.
Ele pagou a universidade de seis filhos vendendo rapadura de porta em porta. Desde 1975, acorda cedo, sai com uma cestinha verde cheia de confeitos feitos pela mulher Nelvi, caminha 200 metros de barro, embarca no ônibus da empresa Azul na Linha Jacuí e segue oferecendo o produto para quem encontrar pela frente em Carazinho, Passo Fundo e Não-Me-Toque, além de sua própria cidade.
O casal, que completa bodas de ouro em novembro, teve sete filhos; três já morreram: o químico Milton em acidente de carro em 1986; a professora Marilei ao cometer suicídio, inconsolável pelo fim precoce do irmão, em 1991; e Maristela, decorrente de complicações da paralisia cerebral, em 1993.
– Enterrar um filho é doer como bicho – desabafa.
Nelvi lembra que dobraram a produção caseira de rapadura para cobrir remédios tarjas preta de Maristela, que passou 19 anos na cama.
– Ela nunca deixou de ser meu bebê de colo, um bebê grande.
Com escolaridade até a 5ª série, Hilberto nem guarda ideia de como sustentou o ensino da prole.
– Eu lutei, não trabalhei. Trabalhar é fácil.
Sua aparência simples e pobre confirma o milagre. Toda manhã veste uma japona furada, o abrigo cinza com rasgo nos joelhos e as havaianas pretas.
– Juntei pobrezas para conseguir o estudo de minhas crianças.
Crianças? Mania de pai que não enxerga o filho adulto:
Márcia, 38 anos, é formada em Química e reside na praia de Cassino. Moacir, 43 anos, é graduado em Veterinária e Administração e mora em Salvador (BA). Marcos, 45 anos, é pós-graduado em Biologia e escolheu viver em Santa Cruz do Sul. Marize, 48 anos, cursou Filosofia e mora em Mogi das Cruzes (SP).
A saída de rapaduras depende exclusivamente do fôlego de maratonista de Hilberto, que não admite regressar para casa de mãos abanando.
– Questão de honra. Melhor voltar tarde, de madrugada, do que ver a cara triste de Nelvi, após horas cozinhando e embalando o material.
Hilberto comercializa 28 rapaduras de 660 gramas por dia, a R$ 9 cada. Foram 360 mil rapaduras vendidas ao longo de sua história. Isso que sofreu calotes em suas andanças, de clientes que pediram para anotar e desapareceram logo em seguida.
– Não tem problema, vou aceitando que é cortesia de Deus. Homem honesto não cobra o outro, cobra de si mesmo.
A memória fisionômica de Hilberto não perdoa nenhuma recusa. Lembrar quem comprou é o básico, ele tem refinamentos.
– Não esqueço mesmo de quem me disse não.
Um de seus métodos é contar piadas picantes diante da indecisão do cliente.
– Ou ele ri e compra ou ele odeia a gozação e também compra de vergonha para calar a minha matraca.
Sua carência charmosa ainda resulta em comissão de 10%. Afinal, ele é um garçom em permanente trânsito de sua cozinha às ruas.
– O troco é dele, para homenagear as covinhas do seu riso e seus olhos de Sinatra – brinca a bancária Juliana Ferreira, 29 anos, uma de suas freguesas em Victor Graeff.
Hilberto não sonha em ganhar na Mega Sena e se aposentar, muito menos delira com qualquer riqueza súbita.
– Se pudesse mudar algo hoje em sua vida, o que faria? – pergunto.
– Ficar mais novo para lutar mais – ele responde, sem pensar muito.
Sorte grande de seus nove netos.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 33, 27/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16806
Veja vídeos de Hilberto
16 comentários:
Olá, Fabrício, Adoro colecionar este tipo de história! Já estou divulgando. abraço
Um exemplo, uma lição de vida!
Lição de vida mesmo, arrepiante.
Arrepiei!!!
E tem gente estagnado na vida que só sabe reclamar!!!
Um texto cheio de existência. Gosto disso!
Sempre me emociono quando passo por aqui! Lindas histórias reais!
A origem da palavra pé-de-moleque: as donas de casa gostam de colocar o doce na janela para esfriar, a moçada os rouba, ela grita para eles que não precisa roubar, pede moleque.
Abraço parao o escritor da família de grandes escritores, deste leitor que é calmo mas se veste de forma extravagante, Cleomar Santos.
sempre bom te ler, te conhecer, encontrar-me e desconhecer-me, tão mesquinha... bjos e parabéns, como sempre! ;)
Que história de vida, de uma beleza e dureza. Mas, a vida é rapadura.
Ele vai toda a semana no banco onde eu trabalho, vender seus doces e não imaginava o qto esse senhor é esforçado!! Parabéns!
Deveríamos sempre ter acesso a histórias como essa para não esquecermos aquilo que é de fato importante na vida. Seu Hilberto nos ensina com propriedade. Sua sabedoria ultrapassa a 5ª série! :-)
Sou uma das filhas desse casal, que sempre nos educou para que aprendêssemos a fazer de tudo, mas que nunca deixássemos de estudar, pois o estudo era a melhor herança que podiam nos deixar. Tanto que mesmo com a morte de alguns filhos (a última em 1991), abriram mão da minha presença, para que eu viesse estudar em Rio Grande em 1992, em uma época em que não havia celular, a comunicação era só por carta.Hoje que sou mãe admiro mais ainda esta atitude.
Meu pai sempre gostou muito de ler e gosta muito do que faz.
Será que tanta doçura vem mesmo da rapadura? Muito bonita a história, de emocionar.
A garra de algumas pessoas servindo de estímulo para outras!
Parabéns!
Muito lindo!
Adoro rapadura.
Fiquei curioso com essas tais puadas picantes.
O ser humano sempre pode surpreender, felizmente alguns para o bem...
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