Arte de El Greco. Texto dedicado ao amigo Marcelo
Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus, em anjos, fantasmas, duendes, rezo ao entrar no carro, faço sinal da cruz ao passar por igreja, enxergo coincidências e sigo rituais.
Quando pequeno, queria ser santo. Hoje, percebo que é difícil ser apenas um homem honesto.
Fiquei abalado pela história real de uma enfermeira mineira. Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida. Não dormi por duas noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.
Ela trabalhou por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia, cuidando e socorrendo pacientes terminais.
Confessou que a pessoa morre como ela viveu.
Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente da enfermidade. Vão daqui para o outro lado sonhando. Não realizam drama, tampouco articulam chantagem. Tamanha a suavidade, não dá para identificar o último suspiro. Aceitam o destino, agradecidos pelo amor recebido.
Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa também definham contrariados. Atolados de culpas e dívidas, esbanjam esgares de sofrimento, protestam pelas dificuldades adquiridas na doença, gritam a cada arrepio, lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom, a dor sempre é insuportável.
Eles falecem com o rosto contraído, fechado, apunhalado. De quem apanhou da morte. Uma feição tensa, de escultura inacabada.
Mas, então, a enfermeira revelou um hábito surpreendente de sua equipe: conversar com o defunto.
Diante do morto sofrido, refratário e penoso, ela cochichava conselhos em sua orelha. Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva, que desistisse da cara amarrada e emburrada, que se arrumasse para o velório e abandonasse o ressentimento.
Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para vê-lo, que ele precisava se despedir bonito, que os parentes mereciam seu perdão e não valia a pena comprar briga por orgulho e teimosia.
Com as palavras delicadas de incentivo, não é que o morto ia soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas, alforriava a boca, relaxava por completo.
O morto incrivelmente escutava. Entendia a súplica da enfermeira mesmo depois do seu fim. Atendia ao pedido e desinchava a amargura e serenava o espírito.
Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo onde quer que estejamos.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 30/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16809
13 comentários:
"No creo en brujas,
pero que las hay, las hay".
Por que precisei estar morto para escutar,
já que vivo, apenas ouvi?
Um abraço do sujeito oculto,
aquele que ouviu dizer e
agora, o escuta.
Sou cético.
Mas luto contra o meu ceticismo dia após dia.
Luto para compreender o que é a espiritualidade.
Gosto do misticismo, acho fascinante. Não acredito no sobrenatural. Acredito em Deus como um ser existente dentro de cada um de nós. Em anjos, talvez. O meu deve ser muito bom.
Sobre os fantasmas, receio encontrar algum no banheiro ou no corredor escuro. Já sobre duendes, conheci vários quando criança, através de algum livro que não me recordo.
Não rezo ao entrar no carro. Na verdade nem o cinto eu uso. Não faço sinal da cruz ao passar por igreja. Só quando entro, e tem que ter a "água benta", senão é inválido. Acredito em coincidências e no destino. E os meus rituais são minhas próprias manias. Odeio o Natal e na páscoa curto os chocolates.
Sou Cético, como um bom aquariano.
Incrédulo, desconfiado e duvidoso.
Mas luto contra o meu ceticismo dia após dia.
Luto para compreender o que é a espiritualidade.
Espero que quando eu morrer, possa ter olhos e ouvidos para ouvir essa tal enfermeira e ver pela última vez todas as pessoas que destruiram o meu ceticismo e fizeram eu acreditar em duas coisas: no amor e na amizade.
Em primeiro lugar, gostaria de lhe dar os parabéns. Esta foi uma das melhores crónicas que eu já li, não pela forma como foi escrita, mas pelos temas que aborda. É fantástico!
Comentando agora:
Não acho que ter as crenças que tem, deve ser descriminado de forma alguma, muito pelo contrário, por acreditar em coisas que muitos não acreditam, deve ser acolhido no coração daqueles que têm tantas crenças em comum. Ser diferente é positivo, os outros é que tornam as coisas negativas, para que satisfaçam com o prazer de poder rebaixar aqueles que são verdadeiros rivais á sua popularidade e vida...
Sim, é verdade. É bastante dificil, actualmente, ser-se honesto. Rodeado de mentira, de inveja, de falsidade, permanecer fiel aos seus ideais, é das maiores provas de vida que sofremos diariamente, mas a verdade, é que se realmente acreditamos em algo, devemos lutar por isso, e não deixar que os outros nos deitem para baixo, e acabem com o pouco que temos! Temos de ser fortes e unir-nos ... Se não acreditarmos naquilo que defendemos desde o inicio, e desistirmos, quem poderá vir a acreditar nesses ideais no futuro? O que nos garante que nós, não sejamos o principio de algo que agora muitos desaprovam, mas que no futuro, não haverá alguém poderoso ou influente, que irá difundir os nossos ideais? Temos de pensar nisso ...
Ser santo ... Não é um sonho completamente desmedido para uma criança ou mesmo para um adolescente. Crescendo numa familia religiosa, onde nos são ensinadas diversas histórias, acreditar na santidade de algo ou de alguém, é um acto nobre, e bastante vulgar. Passamos o tempo a ouvir falar de pessoas que nem sequer sabemos se existiram, mas no entanto, acabam por existir provas de pequenos milagres que fizeram com que o olhar do mundo mudasse ... Não será isso suficiente para ter esse sonho?
É verdade ... Nunca tinha dado muita importância a isso, mas realmente, é mesmo o que acontece. Aqueles que viveram felizes, sentem-se demasiado despreocupados,e conseguem partir para a sua eternidade, sem quaisquer problemas, enquanto os outros, é exactamente o contrário.
Adoro a última frase: "Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo onde quer que estejamos."
Abraços
Quanto mais eu "aprendo" sobre a morte, mais medo tenho de morrer. Como lidar?
Amei o texto. Pra variar.
Bjos, grande mestre!
EXCELENTE!
Trabalhei com crianças com Neoplasia, e sempre percebi que o abraço, o toque, o carinho com que as pessoas se dirigem a eles, cessa pelo menos um pouco o sofrimento. De nada se queixavam, apenas os adolescentes em estado terminal, era mais difícil o diálogo, pela própria idade que já traz a revolta, não pela doença em si, apesar de por serem maiores terem consciência da quimioterapia e da radioterapia. A excelência do trabalho do voluntário estava justamente no diálogo. Acredito que um recém morto escute e observe o modo como o tratam.
Parabéns, pelo texto.
Forte abraço!
Mirze
Quanta pretensão afirmar que sabe o que acontece após a morte! Tudo que se diz a respeito não passa de fantasia que se inventa pra obter algum conforto.
"Anônimo", não é fantasia, não!
É falta de imaginação sua.
Sou prova morta de que isso acontece.
A crônica traz A VERDADE que a razão não sabe explicar,
nem AMEM TIRA aquilo que é fantástico.
De certa forma, até você gosta do oculto,
sujeito oculto, "Anônimo"
Fabro, a gente ouve mesmo antes do nascimento. É verdade...palavra de fonoaudiólogo. Bração!!!!
Kleber
Acho q sempre desconfiei disso... obrigada por provar!
Nooossa que loucura. Acabei de postar no meu blog uma homenagem de saudade a dois amigos que morreram a dois anos e no que olho as atualizações dos blogs que sigo eis que me deparo com essa crõnica incrivel!
Tenho minha fé e as vezes desacredito também. Acho que tudo isso é questão de cada um querer acreditar e assim a coisa passa a existir. Afinal quem pode provar que existe mesmo ou não?
O fato é que sempre rezo por eles e desejo que eles estejam bem onde quer que estejam agora.
Um deles foi meu grande amor, conheci o Charles em 2002 e de lá pra cá ele nunca saiu de minha vida definitivamente, nem mesmo após a morte. Ele sempre volta em sonho.
Abraços
Adorei a crônica!
A vida nunca cessa, não é muito sábio querer convencer alguém a acreditar nisso, cada um com o seu grau de evolução, e tudo tem o seu tempo. Uma coisa que acho interessante, acreditar que tudo termina com a morte seria desprezar por completo a existência de Deus,e que Deus seria esse que dá apenas alguns anos de vida, com tantas desigualdades e injustiças e depois acaba com tudo pra sempre?.
A morte é apenas o fim de uma existência, é a volta a nossa verdadeira casa, a vida é uma escola aonde viemos passar por provas, por experiências e também pagar pelos erros passados, tudo para nossa evolução.
Para quem quiser entender um pouco mais o que é a vida, acessem:
http://www.youtube.com/watch?v=HS0vT9ncxxs&feature=feedf
As coisas já estão mudando, daqui algum tempo a própria ciência irá comprovar com provas irrefutáveis que a vida continua, é apenas questão de tempo.
Forte abraço, fiquem com Deus!
Fabrício,
Achei muito inteligente e sensível o jeito que você abordou o assunto.
Parabéns.
Você escreve muito bem.
Peço uma licença: poderia publicar sua crônica em meu blog? Tenho 2 blogs, um de variedades e outro de medicina. É claro que colocarei sua autoria.
Sou sua admiradora.
Um abraço,
Gislene.
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