Mais conhecido especialista em treinamento de equinos de Passo Fundo, Paulo da Costa Lamison já domou 120 garanhões e éguas em três décadas. Fotos de Tadeu Vilani
O redondel é o divã, as baias são a sala de espera, o minuano agitando as figueiras forma a música ambiente.
Paulo da Costa Lamison, 53 anos, é o mais conhecido terapeuta de cavalos de Passo Fundo, cidade de 185 mil habitantes, situada a 284 quilômetros de Porto Alegre. Domou 120 garanhões e éguas em três décadas de atividade. Criadores largam em suas mãos o destino de animais valiosos, que custam mais de R$ 100 mil.
Natural de Soledade, com passagem por Mato Grosso, pai de dois filhos, Lamison é perito em relinchos e montaria. Não há raça que não se adoce com seu rosto triste, anguloso, de olhos fundos e negros e sobrancelhas em formato de acento circunflexo. Vestido como o figurino campeiro manda, de botas, bombacha, lenço e chapéu, ele não admite frescura no trato com seus pacientes e desdenha o palavrório difundido por filmes como O Encantador de Cavalos:
– Ternura sim, pose não. Ué, cavalo não é retardado para papear todo momento em suas orelhas. Excesso de voz cansa. Treinador que somente fala o que fazer será considerado chato pelo bicho. Cavalo é feito de silêncio.
Lamison suspende o corrimão das legendas e confia na inteligência do envolvimento.
– A rédea é minha voz. E a única verdade é o contato.
Andando de cabeça baixa, para demonstrar humildade, o domador leva quatro meses para cumprir a doma e 11 meses de preparo aos rodeios (o equivalente a uma segunda gestação). A terapia já se inicia pelo modo que se ata o laço e as cordas do cabresto.
– Um nó malfeito irrita e machuca.
Muitas vezes, Lamison é procurado pelos donos para curar traumas. Complexos de Édipo e de Electra, de Cinderela e Peter Pan não têm serventia na cocheira. Os problemas são outros:
– Complexo contornável é quando o cavalo se fere ao pular arame, e passa a temer a proximidade das cercas. Brabo de superar é quando o cavalo corta a boca com o buçal. Estraga a educação: sangrará sempre na mínima mexida. Ele se torna absolutamente arisco, antissocial.
O analista de Bagé, personagem de Luis Fernando Verissimo, conheceria novos métodos do pelego. Assobiar, por exemplo, é pré-requisito do terapeuta, uma graduação necessária nas lidas do inconsciente equino.
– A mãe Benedita me educou ao assobio de longa distância. Sem assobiar, cavalo não abre o coração.
Quem concebia a doma pela força, na base do grito e da pressa, acaba se surpreendendo com as sutilezas da negociação. Seduzir não corresponde a apenas mandar, fazer muxoxo e ter firmeza para colocar a sela e arreios. A longa convivência é que gera o entendimento.
– O bichano é uma antena, não recomendo esconder nenhum sentimento dele.
Distinto de sua fama, o cavalo não é resistente, mas hipersensível. Pode morrer de cólica, gripe ou tétano. Não se deve tirá-lo do campo e substituir sua alimentação simplesmente pela ração. O essencial é reconstituir a atmosfera rural de nascença.
– Cada cavalo é um idioma. Temos que descobrir sua habilidade, ver se gosta de trabalhar com o boi, saber quem foi o pai e a mãe, observar o temperamento de irmãos e irmãs, compor a árvore genealógica para definir quais os melhores comandos e evitar que ele dispare e enqueixe à toa.
O fim da análise – e a alta – representa a fase mais espinhosa. Quando Lamison coloca de lado o atendimento individual e se impõe como terapeuta de casal. Período de explicar e repassar os fundamentos do treinamento ao dono, para que o trabalho de respeito seja mantido. A tarefa agora é domar o patrão para domar o cavalo.
– Trato o cavalo, para depois tratar o cavaleiro, para em seguida tratar os dois juntos e acasalar o ritmo.
Além da liberdade por fora, cavalo feliz é o que fica solto no próprio pensamento.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 33, 06/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16784
Veja vídeos de nossa passagem por Passo Fundo
6 comentários:
Gostei muito do texto. Teu jeito de descrever é surpreendente Carpinejar, e as falas do Paulo me impressionaram muito também: "Cavalo é feito de silêncio."
Parabéns aos dois.
Abraço,
Pedro Bravo
http://www.fotosdepalavras.info/
Uma lição de vida que deveria ser lida por todos nós, seres humanos, racionais pela capacidade de pensar, mas estupidamente burros pela maneira grosseira de tratar o nosso próximo, que dirá um animal.
Belo texto, estou aprendendo muito aqui!
Belo exemplo de vida, fiquei encantada.
Abraços
Eu me lembrei de quando li As Viagens de Guliver. A partir do livro, comecei a ter certa paixão por cavalos. É bonito aprender um pouco mais sobre eles..
Abraços
amigão, te espero lá no blog:
http://cariboxoxo.blogspot.com/
entre e leia história de Alexei Bueno e Ivan Junqueira (código alexena)
Fabro, Fabro...
Os acasos da tua escrita sempre tão próximos de meu fantasma, tão impossível prmanecer indiferente após a leitura..
Que lindo as palavras que escol este para descrever tão belo trabalho! A própria leitura trNsmite paz. E silencio.
Martina
Suas palavras são gotas douradas, regadas com cheiro de terra molhada, levitar a alma na doce estação do encontro.
Parabens! Quando puder, Acesse esse simples blog http://docestacao.blogspot.com/
Abraços,
Conceição Honorato
Postar um comentário