sábado, 19 de novembro de 2011

O QUE É O QUE É

Alunos da Escola João Carlos Rech treinam para gincana municipal. Foto de Adriana Franciosi

No Rio Grande do Sul, não existe cidade do interior, mas somente capitais.

Bento Gonçalves é a capital do vinho. Caxias do Sul é a capital da uva. Santa Cruz do Sul é a capital do fumo. Pelotas é a capital do doce. Novo Hamburgo é a capital do calçado. Nova Prata é a capital do basalto. Em cada pórtico, está gravado o orgulho de uma cultura ou a vaidade de uma economia. Muitas vezes a identidade é resultado de uma peculiaridade famosa do lugar, a exemplo de Cândido Godói, que todo mundo sabe que lidera a taxa de nascimento de gêmeos no país.

Quando não há fabricação de um produto dominante, municípios não ficam atrás e criam lemas sentimentais. Como Alecrim, terra do reencontro, ou Aratiba, local da Energia Positiva, ou ainda Paim Filho, celeiro da solidariedade. Em nossa peregrinação pelo continente pampiano, destacamos Vera Cruz, a curiosa e insuperável capital da Gincana.

WAR

A 166 km de Porto Alegre, com 22 mil habitantes, Vera Cruz é a regressão à infância. Melhor do que hipnose ou túnel do tempo. Retoma-se uma época escolar em que era natural disputar corridas de saco, puxar o cabo de força e fazer rifas.

A gincana é uma febre coletiva. Desde 1989, nos primeiros dias de junho, cinco mil pessoas são mobilizadas para desvendar tarefas gigantescas e concorrer a R$ 25 mil em prêmio. As equipes têm sedes próprias, verdadeiros diretórios políticos abertos o ano inteiro, filiando voluntários e organizando eventos beneficentes para arrecadar fundos.

– Vencer uma gincana é nossa Copa do Mundo, corresponde a entrar para a história da província – esclarece o dentista Cássio Hoff, 32 anos.

– Fiquei rouca por meses, é a glória da minha vida – avisa a estudante Elisandra Rauper, 24.

Com o sigilo de vestibular, uma equipe especializada monta o concurso envolvendo exercícios de matemática, episódios do arco da velha e atividades esportivas. As questões nunca se repetem. O objetivo é homenagear o conhecimento de diferentes gerações dentro de uma família.

– O filho valoriza o que o pai sabe que valoriza o que o avô sabe que valoriza o que neto sabe. Um ajuda o outro a completar os trabalhos. Não vejo nada tão bonito como uma criança exclamando: “Minha mãe conhece a resposta!” – diz Juliano Pauli, 30, coordenador da gincana.

Durante 72 horas consecutivas, a população para, e assiste uma divertida guerra entre seis equipes. O mapa da cidade se converte num tabuleiro de War. A rivalidade é do tamanho de um GreNal, da magnitude folclórica de um duelo dos bois Garantido e Caprichoso.

– Baixa um espírito de combatividade. Amigos de diferentes equipes se dão um tempo até o fim da competição, viram espiões – alerta Cássio, que foi obrigado a mudar de equipe, dos Selvagens para a heptacampeã Kaimana, senão sua esposa Sabrina pediria separação.

SUPERAÇÃO

Já foram 350 charadas distintas em 23 edições. A criatividade não tem fim. Sobressaem operações faraônicas como encontrar a maior quantidade de fichas telefônicas em oito horas (a vencedora coletou 254 fichinhas) ou trazer um preá ou um louva-a-deus em menos de 30 minutos.

– O banco de dados das equipes supera o cadastro da prefeitura – brinca Hoff.

Ninguém tem medo do vexame. O desejo de vencer supera o constrangimento. Empresários, por exemplo, correm 100 metros equilibrando frutas na cabeça. Os prazos apertados não permitem explicações. Encontros repentinos se assemelham a sequestros, o bucólico trânsito da Rua Cândido de Medeiros trepida em fuga de malucos.

– Gritamos para uma colega: “Entra no carro”, ela deve confiar – lembra Patrícia Neves, 21.

O cemitério se eleva a uma peça fundamental na definição do vencedor. Procurar um morto que nasceu numa determinada data, no apogeu escuro de madrugada, é uma solicitação quase tradicional, a sobremesa do suspense.

– Trata-se de um jogo maravilhoso de dedução, um momento detetivesco, de juntar pistas e atingir uma revelação – define Juliano.

Crianças passeiam por lápides decorando sobrenomes alemães, sem ressabio de fantasmas e assombrações. Desde pequenas, desprezam o medo do escuro e do sobrenatural para somar pontos.

Em Vera Cruz, gincana é brincadeira séria. Que ganhe o mais vivo.







Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 19/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16891
Conheça o cobiçado troféu da gincana municipal

6 comentários:

vervedirlass disse...

Em http://vervedirlass.blogspot.com
-Sinceramente, vervedirlass (verve por pretensão).

Cláudio Roberto Ost disse...

Fabrício, explica-me: carpinejar sendo verbo, indica que ação?
Não havendo movimento sem causa, você (e Cinthya ao teu lado) tornou-se conhecido meu (por ainda só nos textos) por uma razão que para mim é muito óbvia: redenção.
Ontem de noite, cedo, eu tinha sono; ao invés de dormir, a me prender na vigília tentou-me o Guga, em seus dez anos depois de ganhar do Corretja.
Nem sei como terminou; não deu nem para o começo; não do jogo dele, que jogava como sempre, e despachava a esquerda como nunca, deve ter ganho, claro, isso eu nem sei; não deu para o começo eu vê-lo jogar; zapeei e achei (?) o que realmente procurava: Hitch, o Conselheiro Amoroso.
Também durou pouco, não que eu não goste, é que já vi não sei quantas vezes, e o que queria – e quero enfim – é parecido, mas é diferente.
Certo que zapeando voltei ao Hitch outras vezes ainda, numa delas para aprimorar a vista da cena em que Hitch entende que Maria é que é casada e não a irmã dela.
São artistas, eu sei, mas o olhar de Maria da declaração de amor que Hitch faz é revelador do quanto amar é deslumbrante.
Ela é artista, eu sei, foi também o que Hugh Grant disse, contando que Julia Roberts Anna Scott o pedira em amor, em Um Lugar Chamado Notting Hill (este re-visto completo), falando a ele que era “apenas” uma mulher, e que lhe pedia para ser amada.
Eu procurava histórias como essas; eu procurava a Lu; a minha Lu; eu procurava – e procuro – a minha Lu, o meu amor.
Conclui de ler Borralheiro para dormir só depois, e desperto necessitado de escrever-te ouvindo “She” (She, may be the mirror of my dreams ...).
Lu morreu há dez meses e dois dias.
Fabrício, será que existe amor que, de tão grande, para provar-se precisa desafiar a morte, vence-la? (... minha pequenez pergunta se melhor não seria testar-se nas provas simples do estar-ao-lado, do cotidiano, do superar coisa pouca ...). Será coincidência que também tenha visto o final de The Devil and Daniel Webster, O Julgamento do Diabo?
Como ao rever Hitch, entendo agora que a história do nosso amor tem de ser vista, e revista, no cotidiano das repetições ...
Enxergamos mal, olhemos muito ..,
Borralheiro me mostra o que eu enxergava sem ver; e você; e você e Cinthya.
A Lu está em tudo isso; tem que estar (precisa?); só pode ser ela.
Redimir-me implica enxergar além, ver com se juntam todas as coisas.
Vocês me ajudam nisso.
Este era para ser sobre Santo Cristo e sobre o O Que É O Que É.
Somos de Santo Cristo/RS; eu da cidade de, e a Lu da Linha Divisa; era para mencionar que Santo Cristo é a “Terra do Homem da Terra” ou, como dizem alguns supondo faze-lo jocosamente, a “Capital do Melado”.
De Santo Cristo, cidade mais doce da região portanto, onde “carpinejar” soa assim meio atávico, evocando carpir, carpir_nejar, bordejando o plantio dos sonhos, revirando a colheita das predecessões, daquilo que fomos, que somos e seremos.
Carpinejar é isso? Bem, então, me ajuda a carpinejar em busca da minha Lu, que para isso vivo e viverei.

Um abraço, bom domingo, Cláudio Roberto Ost.
http://wp.clicrbs.com.br/santarosa/2011/01/18/oito-dias-depois-mais-uma-mulher-perde-a-vida-no-km-135-da-br-472/?topo=77,1,1

Anônimo disse...

Carpinejar, adoro teus textos! Sempre ganho livros teus do meu namoro e acho muuuiiitoooo romantico!
O Boralheiro é o retrato invertido de minha casa, onde ele é o psciquiatra que no máximo expressa um "foi bom" e eu a desesperada a contar cada detalhe minimo do meu dia, e etc... incrivel!
Parabens pelo teu trabalho!!
Bettina Capri

Unknown disse...

Realmente é muito bacana ver e sentir por meio dessa leitura a felicidade compartilhada pelos moradores de Vera Cruz, dá vontade de ir pra lá participar um pouco de tudo isso.

Ramiro Conceição disse...

Ao Cláudio Roberto Ost,
na tentativa de aliviar um pouco a sua dor...


DO OUTRO LADO DO RIO
by Ramiro Conceição


Lá, do outro lado do rio, talvez
algo esteja alegre e compense
a tristeza de cá.
Lá, talvez, comece a lucidez
que lave a insensatez deixada aqui,
mas que precisou partir ao outro lado
onde talvez presenteie, principie tudo,
pois, afinal, quem sabe exista só
um lado e, enfim, mortos e vivos
façam parte dum universo sem lados.

Disso ninguém sabe efetivamente!… E
o interessante é que, não importa o lado,
sempre se pousa… cá ou lá… calado!

Anônimo disse...

Obrigado por traduzir de maneira tão perfeita o espirito da nossa gincana. Se houver curiosidade nosso desfile tematico ja foi tema do teledomingo na RBS TV.
Se quiser ver de perto a proxima sera dias 2,3 e 4 de junho de 2012. Abraco!