terça-feira, 1 de novembro de 2011

PELA EXTENSÃO

Há histórias que me enervam. Tenho medo de dormir até com a luz acesa. Não paro de andar pelos corredores, inquieto como um copo espírita.

São relatos que despertam a nítida sensação de que a vida é um majestoso percurso de voz e eco. Aquilo que digo num dia terá resposta no seguinte, que o melhor é ser responsável e atento desde cedo.

Minha amiga Teresa brigava muito com seu pai na adolescência. Época de reunião dançante, meias de lurex coloridas, carteiras emborrachadas.

E telefonemas longos, que custavam uma fortuna e recebiam paranoica fiscalização.

No auge dos 16 anos, Teresa tricotava fofocas com o namorado, e o pai Omar acalentava a triste mania de escutá-la pela extensão.

A quebra de sigilo telefônico acontecia pela própria família. Vigorava arapongagem amadora para descobrir o que os jovens aprontavam.

As casas contavam com dois aparelhos, um na sala e um segundo mais privativo, no quarto ou no corredor.

O trinido vinha para Teresa, e o pai protestava:

– É seu namorado, atende logo e não demora, que estou esperando ligação.

Todos sempre esperavam alguma ligação. Todos sempre demoravam. Todos sempre reclamavam.

Teresa colocava os pés na parede, enrolava os cabelos com uma caneta e não cansava o ouvido. O pai fingia que ia dormir e acompanhava secretamente a serenata do casal. Criou uma série de métodos para não ser identificado. Erguia bem devagarzinho o gancho e segurava o pino com a mão esquerda para evitar ruídos. Prendia o ar, e mergulhava literalmente na correnteza verbal. De modo nenhum, suspirava ou tossia. Resistia no esconde-esconde, com taquicardia de ladrão novo. Às vezes, era desmascarado e a filha berrava:

– Pai, baixa o fone!

Na maior parte dos contatos, saía impune. Teresa odiava a bisbilhotice. Reclamava da falta de privacidade. Formulou um padrão de comportamento para censurar a intrusão fantasmagórica. Quando vinha linha cruzada, lá estava o espião. Quando a dicção falhava, lá estava o grampo.

Teresa hoje tem 50 anos. Seu pai morreu há duas décadas. Ela nunca mais ergue um gancho sem cogitar que Omar cuida dela. Tem vergonha de pensar nisso - apoiando a coisa horrível que ele fazia -, porém torce mesmo para que esteja ouvindo tudo no outro lado da linha: prevenindo maldades, aconselhando caminhos.

No meio de uma conversa comigo, bateu um desespero e ela gritou:

– Pai, não baixa o fone!

No início, não entendi: – Pai? Que pai?

Depois fui entendendo que morrer é não ser visto e permanecer vivo na extensão.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 1/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16873

18 comentários:

Unknown disse...

Essa do telefone sempre aconteceu... agora com o celular a coisa melhorou.

um abraço

Anônimo disse...

palavras cruzadas na linha

ouvia um ruído sempre que
falava no telefone com seu amor
não era problema de linhas cruzadas
era um anagrama escutando as palavras

seus dois omares viviam em linhas opostas
o que foi passageiro ficava de um lado falando
o que fez a passagem ficava em silêncio

aquele que foi passado
às vezes passa a mão no telefone
para saber como está passando
o presente entra sem pedir passagem

não consegue esquecê-lo
passa a mão na consciência e pede para voltar
seu presente passa do futuro

Anônimo disse...

Adorei!!!

Gisa disse...

Como fui adolescente dos anos 80, usei meias lurex e dancei ao som do Village People, isso com certeza me disse muito.
Um grande bj querido amigo (e até o próximo twitter!)

Ramiro Conceição disse...

COVA DA ALMA
by Ramiro Conceição



(Nos pingos do sonho,
uma criatura estranha
insiste em visitar-me).

“Filho, acorda… Sou eu!”
“Pai, você tá aí? Tô chegando.”

(Começo… a desabotoar
a crença, a cova da alma).

“Anda logo! Anda logo!
Estou sob a transitória saída.”

“Tô chegando! Tô chegando!
Estou sobre a entrada da vida.”

(É, dentre os mortos
os vivos… clamam!).

Ramiro Conceição disse...

2 DE NOVEMBRO
by Ramiro Conceição


É 1:58 da manhã
do dia… reservado aos mortos.
Uma mariposa entrou; mas saiu
da janela do poema não-escrito.
Não sobra qualquer dúvida, estou vivo!

Grazii disse...

Que lindo esse texto.
Ótima homenagem ao dia de finados.
Somente quem perdeu uma pessoa querida, sabe o quando doí a dor da saudades, mas nunca iremos esquecer dessa pessoa e ela sempre esta em nossos S2.
http://tijoloscommanga.blogspot.com/

Tania Medeiros disse...

Lembrei do meu Pai ... ele não bisbilhotava, mas esta alerta sempre ... para o meu deleite de hj!!!
Saudades do meu Pai!
Obrigada Fabrício!
Te beijo.

Tania Medeiros

Anônimo disse...

Carpinejar,
que inveja desta tua mente que jorra ideias e pensamentos...
adoro ler-te!
Marisa

Gabriela Guimarães Cavalcanti disse...

Seus escritos são apaixonantes!

Cronista Amadora disse...

A minha avó faleceu quando eu tinha dez anos.
Daí que, vez ou outra, penso estar vendo a barra do vestido cor-de-rosa (que ela usou aos quinze anos e guardou para sempre) passar pela porta do meu quarto.
Estranho, mas gosto de tê-la sempre presente.
Abraços, moço.

Marcelo disse...

Muito bom seu artigo parabéns pelo post

Claudia disse...

Parabéns seu blog esta muito bonito

Bruno Fernandes disse...

Lembro-me quando comentou a respeito dessa crônica na feira da USP. Não vivi a época citada , mas o serviço de espionagem exercido pelos pais jamais estará fora de moda. Um abraço Fabro, saudades de você aqui em Campinas.

Marcela disse...

A morte não é fácil. Belo texto!

Anônimo disse...

Ironias da morte e da vida...

aprendiz. disse...

bonito.

Tábatha Belzareno ~ disse...

Essa crônica me tocou de alguma forma, achei lindo o final! Parabéns.