Arte de Jean-Baptiste-Siméon Chardin
Solidão é escutar a casa do outro como se fosse a sua.
Na hora em que atinge esse ponto, esteja certo: você conheceu o isolamento perfeito. Um isolamento físico e mental. Um isolamento de mangueira de chuveiro.
Você descobriu que não tem amigos. Você descobriu que o mundo é um segundo ventre, e não existe cesariana. Você descobriu que não tem passado, o que é muito mais grave do que descobrir que não tem futuro.
Você dorme e toma emprestado o despertador do vizinho. Não que a parede seja fina entre os imóveis, a sensibilidade da audição triplicou com o vazio.
Nada lhe resta senão obedecer ao relógio. Como uma criança deitada na classe aguardando o sino da escola.
Você bebe qualquer som. Consegue identificar o motor da geladeira, coisa que nunca reparava. O que é longe é perto. No fundo tanto faz a distância, não tem nenhum lugar para ir, nem vontade de ficar.
Ao andar pela sala, vê a necessidade de trocar o forro das almofadas, de arrumar infiltrações no teto, de corrigir o mau contato do abajur. Mas não tem vontade de consertar a vida. O conserto exige esperança.
Você se julga morto. O café é chá, a sopa é suco, a segunda-feira é feriado, a terça é sábado, a quarta é domingo, a quinta é paralisação, a sexta é greve geral.
Você está no apartamento alheio mais do que no seu próprio apartamento. Porque nada acontece em seu domínio. O estranho do 302 é quase um colega de quarto, um irmão emprestado, a pessoa mais próxima da história recente.
O interfone do vizinho apita e corre para atender, ansioso por algum resgate.
Você não encontra o que falar consigo, e antes reclamava da falta de assunto com a esposa. Você não suporta dormir pelo excesso de quietude, e antes lamentava a algazarra dos filhos.
Você não tem o que pensar, já conhece seus pensamentos de cor, se acha um livro lido e previsível.
Está no ponto de puxar conversa quando alguém liga por engano. É capaz de discar o 190 para lembrar onde mora.
Ninguém pisa em seu capacho, formado por cartas, contas e propagandas.
Solidão é estar absolutamente entregue ao ouvido, todo ruído do lado de fora soa como de dentro. Um morador puxa a descarga e você corre ao corredor jurando que tem companhia. É ouvir passos na escada e confiar que foi na sua sala. É ouvir um grito abafado na rua e disparar para a cozinha.
É sofrer um susto atrás de outro sem motivo.
Solidão é acompanhar um por um dos seus batimentos cardíacos. Enquanto o monitoramento é distraído, tudo bem. Na hora em que você começa a contar, esteja certo: você enlouqueceu.
O nome disso é desemprego.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 22/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16894
13 comentários:
Mas quando se entra no próprio universo, é possível encontrar a própria companhia agradável... aí...se descobre lá fora um mundo bem melhor, com um lugar que cabe certinho dentro de si! Adoro seus escritos!Namastê!
Fabro,
na atual conjuntura do capitalismo
até São Expedito foi despedido…
E Nietzsche - que não se permitia sair da solidão, sem em troca receber boa companhia - talvez ficaria menos seletivo se os estalos da madeira do portão - apenas por efeito da variação de temperatura - o fizesse apertar o bigode e erguer uma sobrancelha.
Muita sensibilidade! Literalmente!
mto bom... adorei.
A sua sensibilidade, encanta-me. Abraço.
Nossa...
no caso, eu
Sem dúvida o trabalho dignifica o homem, seja ele qual for, no sentido de integra-lo ao mundo!
É difícil a espera, no meu caso estou ajudando minha irmã com o negócio dela e estudando para concurso, complicado idealizar uma conquista e conseguir alcança-la! Td ao seu tempo não é msmo! Grande abraço!
Fiquei lendo para ver onde e como terminaria a narrativa. Relato perfeito para quem já viveu em apartamento e esteve desempregado... Santo Expedito é invocado em muitas horas assim. Eu mesmo já o chamei!!!
Os filhos saem de casa.
A solidao entra.
No caso, eu (2).
Nossa, tem até uma lagriminha aqui oscilando na margem da pálpebra.
"O conserto exige esperança" mesmo.
Bjs!
que maravilha o teu blog.
olha, que Deus me livre sempre da solidão .
Fiquei receoso ao ler um artigo entitulado "Santo Expedito"... Gostei! Mas, no final, atribui ao "desemprego" esse desabafo...Você me quer enlouquecer...
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