quinta-feira, 30 de junho de 2011

MEU IRMÃO JÔ

Acompanhe minha entrevista no Programa do Jô exibida na quarta (29/6), na Rede Globo.

Foi o primeiro bloco da noite. Teve até troca de beijo de mafioso com Jô Soares.


quarta-feira, 29 de junho de 2011

MADRUGADA CHEIA

Foto de Adriana Franciosi


Sou o entrevistado do Programa do Jô nesta quarta (29/6), na Rede Globo. Falarei do meu novo livro Borralheiro. A reprise acontece no domingo, no GNT.

Não perca!

LEI SECA

Arte de Cínthya Verri

O inimigo público do homem é o barman gostosão.

Foi ele que nos conduziu a uma crise de identidade sem precedentes, ao término do maniqueísmo e da Guerra Fria.

Do barman, veio o metrossexual, o pansexual e Patrick Swayze. Não duvido que os emos não sejam ramificações de sua índole.

O barman destruiu a luta entre o bem e o mal, tirou o homem do mundo e o colocou em casa para defender seu território doméstico. Ou ele voltava rápido ao lar, cozinhava, passava aspirador e cuidava dos filhos, ou perdia sua mulher para sempre.

O barman é o monstro pornográfico, o vilão erótico, destruiu nosso conforto maternal de comida e roupa lavada. Não tem como concorrer com ele: atende ao mínimo sinal, dança, rebola, canta e prepara poções melosas batizadas de filmes românticos. Uma mistura demoníaca de stripper, personal trainer, karaokê e liquidificador, tudo o que uma mulher sente falta em seu marido.

Quando ele surgiu, seminu e sarado, atrás dos balcões nos bares e boates, morreu o heterossexual como meu pai e meu avô conheciam.

O escandaloso e convencido barman suplantou o discreto e humilde garçom.

Morreu a gravata-borboleta para ceder espaço à bandana. Morreu o dente de ouro do maître para abrir lugar a aparelhos e piercings. Morreram os pelos dos ouvidos dos cinquentões para o reinado dos peitos depilados dos rapazes. Morreu o destilado caubói para um edifício de drinques coloridos e duvidosos. Morreu a simplicidade da bandeja pela agitação da coquetelaria. Morreu a imobilidade generosa do funcionário pelo show de malabarismo, acrobacia, e mágica. Morreu a elegância do dedo levantado em nome do assobio histérico.

O garçom exemplificava lealdade: padre que guardava nossos pecados e limpava a mesa. Fácil de acreditar, chorar dor-de-corno, pedir emprestado o ossinho do ombro. Nossa felicidade terapêutica consistia em oferecer gorjeta e derramar um pouco de bebida ao santo.

Já não conheço nenhum amigo que confie no barman. Sofre-se o medo de que ele se aproveite da fragilidade das confissões e seduza a esposa.

O barman é um infiltrado na barbearia; deveria aparecer longe de nossos olhos, somente no chá-de-panela.

Em sua companhia, não há como vacilar um minuto, somos obrigados a buscar bebida porque as mulheres criam motivos para se aproximar dele. É um risco, uma temeridade: jovens lindos, cheirosos, disponíveis, e traficando secretamente o número de seus celulares nas comandas.

O barman é o fim do faroeste, da porta-balcão, do cavalo amarrado no obelisco.

Não consigo imaginar John Wayne sendo servido por um barman.

Sentimos saudades do velho garçom.

Todo garçom tinha a obrigação de ser mais feio do que a gente. Uma tranquilidade que não volta mais.

O que nos resta é beber para esquecer. Dentro de casa.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 28 de junho de 2011

SEXO e sexo

Arte de Salvador Dalí

Sexo é tudo para o homem, na primeira colocação do ranking, seguido de futebol e carro. O quarto e o quinto lugares ainda estão vagos.

Sexo não é tudo para a mulher, situado no quinto lugar da lista, depois de casamento, amor, romance e paixão.

Sexo é envolvimento para o homem. É capaz de morar com uma mulher que faz sexo maravilhoso. Ele se apaixona pelo corpo para se apaixonar pela alma. Não desgrudará daquela que transa na primeira noite, as demais madrugadas são para confirmar que a estreia não foi uma alucinação. Admira quem é liberta de preconceitos, safada, exigente de posições fora do convencional. A possibilidade de experimentar uma vida extraordinária na cama arrebata sua confiança. O macho partilha de três fantasias: converter uma lésbica, tirar uma prostituta da profissão e casar com uma ninfomaníaca.

Para a mulher, envolvimento depende de forte retranca: segurar a primeira noite. Pode ter sexo na primeira manhã ou na primeira tarde. Mas primeira noite, não. Não pode aparentar facilidade, senão ele dispensará o esforço da conquista e não lhe dará valor.

Sua metodologia é retardar o grande momento até que ele se renda ao compromisso sério. Três dias de encontros sem nada é o ideal. Caso completar uma semana, é matrimônio na certa. Talvez até o candidato ficar alucinado de tesão a ponto de não diferenciar o que é real do que é imaginário. Existe um momento em que o parceiro, embriagado pelo próprio desejo, diz sim para qualquer pergunta. A fêmea acalenta três sonhos eróticos: que ele não ronque, não durma no sofá e não palite os dentes. Caso a trinca de modos aconteça, ela abrirá mão da fantasia com o dentista, o psiquiatra e o pediatra do filho.

O homem nunca reclama do casamento ao transar sete vezes por semana. Chia diante de uma média menor. A mulher reclama do marido se ele pensa em sexo o tempo todo.

O homem é o único mamífero que conta há quantos dias está sem transar. Pode perguntar agora ao seu parceiro: não duvido que não mencione as horas e os minutos. Ficar sem sexo é como uma prisão perpétua masculina. Uma contagem de confinamento. Logo depois que ele trepa, inicia de novo seu cronômetro. É um Sísifo dos travesseiros.

Mulher apenas contabiliza os dias de abstinência quando completa três meses. O trimestre é um sinal preocupante, a ameaça de encalhe. Falta de sexo é como gestação para a ala feminina, surge com uma pequena barriga.

* * *

Para o homem, o amor é prêmio de bom sexo.

Para a mulher, o sexo é brinde de amor verdadeiro.

Os dois estão sempre certos.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 28/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16743

sábado, 25 de junho de 2011

PROCURA-SE UM BARBEIRO

Lorena resiste a fechar negócio herdado do pai. Walter, que trabalhou por seis décadas como barbeiro, em registro feito em 2000. Fotos de Adriana Franciosi.
Barbear-se é um luxo masculino. Ainda mais se feito com navalha.

O avental azul, a espuma, as laminadas de baixo para cima no pescoço. Depois a toalha quente, a loção, o talco na nuca. Todos os cuidados para a pele não ressecar e receber plenamente as carícias do vento.

A leve ardência no rosto ao sair na rua, em especial no inverno, é uma das melhores sensações de bem estar dos homens.

A cena é rara no Rio Grande do Sul. As barbearias foram substituídas pelos salões de beleza, e são poucos os profissionais que sabem manejar uma lâmina. Um exemplo é a barbearia de Rio Pardinho, distrito do interior de Santa Cruz do Sul, cidade de 118 mil habitantes, a 147 quilômetros da capital gaúcha.

– Ninguém se interessa em ser barbeiro, somente cabeleireiro – desabafa Lorena Waechter, 61 anos.

Desde a morte do seu pai, Walter, em 2000, o negócio não encontrou um funcionário. A vaga permanece aberta. Dois pretendentes apareceram, e não voltaram no dia seguinte.

Localizada às margens da ERS-471, num casarão histórico de 1895 (onde funciona bar, restaurante e bolão), a salinha está desamparada, deserdada, sem aquela alegria dos senhores esperando sua hora folheando revistas antigas.

Apesar da tabuleta convidando para entrar, as tesouras enferrujam em cima da cômoda, os pentes mentem a idade dos fios presos nos dentes.

O espelho é fiel ao dono e fez luto; enegreceu, cobrindo exatamente a posição em que Walter ficava, acima dos ombros dos clientes.

– O pai trabalhou seis décadas a fio, desde 1944. Comprou o ponto de meu avô Helmut, no fim da II Guerra Mundial. Não vejo sentido em fechá-lo. Minha esperança é meu fiado, confio que uma alma talentosa virá para continuar sua história – diz Lorena.

– Havia um ritual maravilhoso, ele afiava a lâmina na pedra de amolar antes de atender. Os cães paravam de latir em respeito – explica Irinêo Becker, 69 anos, marido de Lorena.


Walter recebia 40 pessoas por mês, até adoecer de câncer e falecer aos 90 anos. Cobrava barato na época, o equivalente hoje a R$ 10 o corte e R$ 5 a barba e o bigode. O que o motivava era a animada conversa que travava com os amigos sobre política e futebol. A tertúlia iniciava suavemente em português e terminava sempre inflamada em dialeto alemão – alguns, irritados com as opiniões, esqueciam de pagar.

– Minha tristeza é que ele nunca aparou o meu cabelo, só arrumava cabeça de homem.

Lorena é uma de suas três filhas do casamento com Olinda. As outras são Margit Panki, 65 anos, e Doris Brust, 69 anos.

– A vida inteira junto; de vez em quando peço para o pai abrir a porta, esqueço que ele já partiu.

A barbearia de três janelas é o cantinho predileto de suas folgas no bar. Senta na cadeira fabricada pelas mãos paternas e chove saudade pelos vidros.

– É meu pátio dentro de casa, cada um tem o seu, né?

O vizinho Arno Waechter, 89 anos, é um dos moradores do distrito que mais lamentam a lacuna do serviço. Cobrador de ônibus aposentado, não disfarça o recente talho no lado esquerdo do rosto. Não é prêmio de nenhuma briga ou cicatriz de uma confusão.

– Desde guri, me arrumava na poltrona de Walter. Não me acostumei com sua ausência. Como protesto, eu me corto fazendo a barba.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 25/06/2011
Porto Alegre, Edição N° 16740
Acompanhe nossos vídeos na barbearia.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

ATRÁS DO BALCÃO

Arte de Cínthya Verri


O privilégio irrita. É esperar numa fila e um barbado que acabou de surgir ser chamado antes. Nossa paciência não é recompensada pela igualdade. Não há problema nenhum em reconhecer o trabalho e a importância de alguém, desde que eu não seja envolvido como moeda no pagamento.

* * *

Mas o que mais irrita de verdade é perder o direito a ponto do direito do outro parecer um privilégio.

Rubem Braga foi pedir um ovo numa lanchonete paulista, o olhar armado com os talheres das sobrancelhas:

— Ovos fritos, por favor?
— Não, não temos ovo — o atendente respondeu para servir o sujeito ao lado com farta porção de omelete.

* * *

A humilhação é maior do que a raiva e retira as palavras — talvez seja uma raiva fria e demore a ser engolida. O cronista não teve reação, não brigou, não revidou, guardou suas sobrancelhas no guardanapo do rosto e tomou as dores da rua.

* * *

É um pouco assim no amor. Ou muito assim. O marido recusa ovos estrelados para esposa enquanto prepara omeletes para as demais freguesas.

* * *

É terrível para uma mulher acompanhar seu companheiro feliz com os amigos do futebol, disposto e incansável para missões profissionais no final de semana; e totalmente ausente em casa. Não de presença, mas de espírito. E um espírito analfabeto que sequer escreve cartas do além.

* * *

É ele pisar no capacho que fecha o rosto, é ele entrar na sala que resmunga. Não aceita carinhos, conversas, delongas. Sucumbe à mecânica da rotina: tomar banho, jantar, assistir televisão e dormir. Quase como um recruta em serviço militar, adotando uma série de tarefas físicas para não pensar.

Já porta afora saca gracinhas com as balconistas, diverte-se com o porteiro do prédio, ri sem parar ao telefone.

* * *

A esposa conclui que vem sendo um monstro, responsável pela desgraça familiar. As mulheres sempre assumiram a culpa — os homens sempre recorreram ao ódio.

* * *

Ela se ressente de não agradá-lo como no início. Vai ao terapeuta, inscreve-se em ginástica sexual, frequenta yoga, ocupa o dia inteiro criando alternativas para salvar o relacionamento.

* * *

Não há ninguém para avisá-la que não deve sofrer pelos dois, seu marido é que deixa o melhor para o mundo e o pior para ela.

* * *

O amor não é um privilégio, é um direito.

* * *

Se não entendeu, por precaução, é bom lembrar ao marido que faltam ovos em casa.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 21 de junho de 2011

TEMPO É TERNURA

Arte de Jean Dubuffet

Viver tem sido adiantar o serviço do dia seguinte. No domingo, já estamos na segunda, na terça já estamos na quarta e sempre um dia a mais do dia que deveríamos viver. Pelo excesso de antecedência, vamos morrer um mês antes.

Está na hora de encarar a folha branca da agenda e não escrever. O costume é marcar o compromisso e depois adiar, que não deixa de ser uma maneira de ainda cumpri-lo.

Tempo é ternura.

Perder tempo é a maior demonstração de afeto. A maior gentileza. Sair daquele aproveitamento máximo de tarefas. Ler um livro para o filho pequeno dormir. Arrumar as gavetas da escrivaninha de sua mulher quando poderia estar fazendo suas coisas. Consertar os aparelhos da cozinha, trocar as pilhas do controle remoto. Preparar um assado de 40 minutos. Usar pratos desnecessários, não economizar esforço, não simplificar, não poupar trabalho, desperdiçar simpatia.

Levar uma manhã para alinhar os quadros, uma tarde para passar um paninho nas capas dos livros e lembrar as obras que você ainda não leu. Experimentar roupas antigas e não colocar nenhuma fora. Produzir sentido da absoluta falta de lógica.

Tempo é ternura.

O tempo sempre foi algoz dos relacionamentos. Convencionou-se explicar que a paixão é biológica, dura apenas dois anos e o resto da convivência é comodismo.

Não é verdade, amor não é intensidade que se extravia na duração.

Somente descobriremos a intensidade se permitirmos durar. Se existe disponibilidade para errar e repetir. Quem repete o erro logo se apaixonará pelo defeito mais do que pelo acerto e buscará acertar o erro mais do que confirmar o acerto. Pois errar duas vezes é talento, acertar uma vez é sorte.

Acima da obsessão de controlar a rotina e os próximos passos, improvisar para permanecer ao lado da esposa. Interromper o que precisamos para despertar novas necessidades.

Intensidade é paciência, é capricho, é não abandonar algo porque não funcionou. É começar a cuidar justamente porque não funcionou.

Casais há mais de três décadas juntos perderam tempo. Criaram mais chances do que os demais. Superaram preconceitos. Perdoaram medos. Dobraram o orgulho ao longo das brigas. Dormiram antes de tomar uma decisão.

Cederam o que tinham de mais precioso: a chance de outras vidas. Dar uma vida a alguém será sempre maior do que qualquer vida imaginada.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 21/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16736

sábado, 18 de junho de 2011

O CASEIRO DO MAR

Afastado da família por quase três meses, Bacelar sobe os 161 degraus e 39 metros do Farol de Mostardas quatro vezes ao dia. Foto de Emílio Pedroso

Ele apaga e acende a luz de um dos mais importantes faróis do Rio Grande do Sul. É o caseiro do mar, o zelador das ondas e do vaivém lírico da costa marinha gaúcha.

O suboficial Luis Carlos Donato Bacelar, 50 anos, pernambucano de nascimento e gaúcho por adoração, sobe 161 degraus quatro vezes ao dia. Mantém ativo o Farol de Mostardas, em Tavares, cidade litorânea de 5,2 mil habitantes, a 217 quilômetros de Porto Alegre.

Inaugurada em 1894 e reformada em 1940, a construção é um dos oito faróis que permanecem guarnecidos no Rio Grande do Sul, dispensando estrutura automática e dependendo do controle de um faroleiro.

Do mirante, o bege das dunas, o cinzento dos terrenos baldios e o verde escuro das águas formam uma fusão extraordinária.

– É um outro planeta, uma Antártica sem gelo – suspira.

Bacelar atravessa 85 dias por ano, de 6 de junho a 29 de agosto, na casa da Marinha aos pés do farol, completamente isolado, suportando a saudade da família. Pretende apenas iluminar, não ser O Iluminado de Stephen King:

– Não posso parar um minuto, cumpro permanente agenda física e intelectual para não ficar banzo.

A mulher, Denise, 49 anos, e seus três filhos – Luiz Carlos, 21 anos, Pedro Augusto, 18 anos, e Renato, 12 anos– moram em Pelotas. Ele não pode trazer nenhum parente durante o serviço.

– Meus olhos me fazem companhia – diverte-se.

Vinte e cinco barcos pesqueiros e mercantes que passam pela praia são suas visitas, ainda que visuais.

Bacelar não pode perder a hora. Liga o facho que atinge 40 milhas exatamente ao pôr do sol, às 17h45min, e desliga ao amanhecer, 7h10min.

Disposto a não enlouquecer, alimentou uma disciplina severa de pequenas e simpáticas missões. Uma delas é mandar quatro boletins meteorológicos diários para o Centro da Marinha, no Rio de Janeiro. Alistado desde que era adolescente, há três décadas no serviço, formado em Hidrografia e Navegação, ele se define um marinheiro de várias encarnações. Não existe porto que não conheça no país, de Belém a Rio Grande.

Sua dedicação ao farol gera ciúme na mulher, que telefona várias vezes de tarde.

– Eu entendo o ciúme. A torre é mesmo feminina, vestida de azulejos, demora para se arrumar e piscar para o oceano. Exige cuidados especiais, vaidosa como uma apaixonada – provoca.

E Bacelar não nega carinho à sua amante de 39 metros. Varre as escadas e pinta a fachada de preto e branco, sobe a cada mudança climática para tirar ou pôr as sanefas (cortinas) da cabine, e proteger as lentes e cristais franceses.

Ele tem acesso a entrar a qualquer instante no espaço sonhado por todo adolescente, em especial aos que já namoraram nas casinhas de salva-vidas e que sempre desejaram passar uma noite romântica no alto do farol.

– Vejo jovem tentando pular a cerca, mas não dá. Esse janelão tem dono.

O faroleiro do litoral se delicia com a exclusividade do horizonte. Lança o lampejo como quem coloca um poncho no mar.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 18/06/2011
Porto Alegre, Edição N° 16733
Acompanhe nossos vídeos dentro do Farol.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

DEITANDO O PORTA-RETRATO

Arte de Cínthya Verri

Depois da separação, um envelhece, o outro rejuvenesce.

Não tem mais nada em comum. Divergem de reações. Um resta deprimido e o outro se exibe bem humorado. Um quer morrer; o outro, renascer. Um estará demolido; o outro, refeito. Um demonstra retornar de um campo de trabalho forçado; o outro, de um spa.


Nenhum dos dois piora ou melhora junto.

* * *

Lembro de Ronaldo e Élida.

Ronaldo virou avô de si. Esqueceu o banho, engordou, envelheceu dez anos em duas semanas de solidão, criou rugas, largou o futebol e nossos encontros de pôquer e uísque. Sua casa parecia invadida por um mendigo.

A louça empilhada na pia, a cama desarrumada, a pilha suja da lavanderia, a comida vencida: encarnava um estado de abandono e de geriatria prematura.

Dormia de botas e cinto — desdenhava dos pijamas e dos tecidos cheirosos e alinhados. Atendia o desejo infinito de se castigar.

Não aceitava o fim do relacionamento. Continuava brigando internamente, ralhando, pensando em voz alta porque se achava incapaz de pensar em silêncio. Ofendia seu amor a cada suspiro. Um suspiro com cuspe, falado, exorcista.

Não conseguia parar de discutir, ainda que sozinho. Sofria de uma curiosidade insaciável decidido a descobrir até onde se aguentaria. Com a desistência do par, agora se testava, examinava sua repulsa.

Não se via responsável pelo rompimento, bancava a vítima, o incompreendido, aquele que não contou com segunda chance e tempo para se explicar.

* * *

Do casal que se separa, um vai decair e outro se levantar. É assim. Nenhum dos dois desfruta do mesmo estado afirmativo de espírito.

* * *

Diferente de Ronaldo, Élida virou filha de si. Emagreceu, cortou os cabelos, comprou um guarda-roupa novo, começou a se reunir com as amigas no final do expediente e frequentar baladas. Seu apartamento recém-adquirido parecia ala impoluta de loja de móveis. Tudo no lugar, luzindo.

Seu desempenho no trabalho melhorou. A cada momento, despertava a inveja dos colegas e tinha que responder sobre a repentina mudança de comportamento.

Ninguém lhe dava mais de 35 anos (ela ultrapassava os 45). Ninguém cogitava seu divórcio. Os amigos custavam a acreditar na perda recente. Ela não apresentava olheiras, não fungava ao mexer nas gavetas, seu rosto enfrentava o vento do inverno sem lacrimejar.

* * *

Sempre com a separação, um fica bem, o outro fica mal.

Mas cuidado ao tomar partido. O que mais sofre é aquele que melhora. Tenta chamar a atenção do ex pela alegria, obcecado em provar o que ele perdeu de viver dentro do casamento.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 14 de junho de 2011

DORMINDO COM O INIMIGO

Arte de Philip Guston


Puxar o lençol é motivo de discussão. Puxar o lençol e o edredom é motivo de crise. Puxar o lençol, o edredom e roubar o travesseiro são motivos de divórcio.

Coisa séria a disputa pelas cobertas de noite, um perigoso jiu-jítsu de pais de família, uma luta livre de pijama.

Não há bruxismo mais grave do que das mãos e dos cotovelos defendendo o território e guardando o lugar aquecido.

A reforma agrária talvez somente seja possível depois da partilha igualitária da roupa de cama pelos casais.

Mari se deitava e logo encarava seu marido como um inimigo. Caco tomava pílulas de cafeína para se manter acordado e ser o último a fechar os olhos, desconfiado das armadilhas de sua esposa.

Não mais relaxavam, não se abraçavam, não pediam conchinha, não encostavam os pés. Adormecer era o mesmo que ser enganado. Caco temia que Mari virasse uma múmia, a ponto de confiná-lo na Cidade dos Mortos. Mari receava que Caco se convertesse em lobisomem, tomando seu conforto e espaço.

Eles se odiavam silenciosamente de madrugada. Algo inconsciente, imperceptível no detector de metais da terapia. Não iriam mesmo conseguir controlar a vontade de passar o outro para trás. E ninguém realmente consegue: uma das glórias do amor é despertar regiamente enrolado enquanto nosso par treme de frio no canto. Representa uma cena de insuperável cinismo. Muitos não freiam o sadismo e culpam a vítima: “Por que você não me avisou?”.

Para salvar o casamento e evitar a saída litigiosa de quartos separados, os dois optaram pela alternativa diplomática de individualizar o lençol e o edredom. Cada um compraria o seu enxoval. Terminaria assim a injustiça noturna, o MST, o colchão improdutivo.

Na primeira noite juntos após a medida, saíram do banho direto para a cama com uma volúpia inédita, um contentamento infantil.

Coroando o entendimento, ainda tiveram a sorte de contar com uma madrugada bem fria; os termômetros em Porto Alegre flertavam com o negativo.

O que não imaginavam era a ação impulsiva da empregada, que cruzou os lençóis, indiferente à sutil divisão dos bens.

– Mari, quer que levante para separar as cobertas?

– Não, Caco, deixa assim, senão vai fazer vento.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 14/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16729

segunda-feira, 13 de junho de 2011

MEDÍOCRE


"Técnico bom é o que mexe com o time ganhando, não é aquele que mexe com o time perdendo, movimento natural e previsível para reverter o resultado."

Falcão não segura vitórias.

Problemas de comando? Plantel subaproveitado? Rixas no vestiário?

Por que o Inter está vacilante no início do Brasileirão? Leia no Rolo Compressor.

sábado, 11 de junho de 2011

IRREDUTÍVEIS GARIBALDENSES

Para Ronaldo Borsoi, dono de uma loja de brinquedos, a sesta é como uma poção revigorante para a correria do dia a dia. Foto de Emílio Pedroso

A sesta não é um direito somente na Espanha, onde ocorre o Campeonato Nacional de Siesta em outubro. É também um hábito em Garibaldi, belíssima cidade serrana localizada a 110 quilômetros da Capital e que abriga 30 mil habitantes.

No intervalo do almoço, os moradores não trocam o sono pelo consumismo. O lucro não compra o descanso dos olhos. De segunda a sexta, as lojas fecham das 11h30min às 13h30min. Não existe exceção, desculpa ou choro de cliente capaz de convencer os lojistas do contrário. Todos chaveiam a máquina registradora e serpeiam as ladeiras em direção ao lar.

O cochilo da digestão é sagrado. As tabuletas de “Volto Já” tomam conta das vitrines. Durante o período, turistas amargam a espera nos degraus do comércio.

– Fiz o teste de abrir a loja na sesta e não funcionou. O público está adaptado e não vale a pena mudar. O pico é das 17h às 19h30min, na saída do emprego – esclarece a comerciante Melissa Chiesa, 32 anos.

De acordo com a população, o costume melhora a qualidade das amizades, soluciona as brigas domésticas e revitaliza o desempenho no trabalho.

– A sesta divide o dia em duas manhãs, é mais uma chance de sonhar – diz a balconista Larisse Pagliarini, 24 anos.

O repouso de 15 a 20 minutos após a refeição reduz a ansiedade de terminar com as tarefas e aumenta o capricho no atendimento. A maior parte dos funcionários erra menos, esquece de conferir o relógio, fica mais atenta, animada a negociar e a ouvir.

– Nenhum vendedor com pouco sono ri de volta. O mau humor tem remédio, descobrimos a cura – afirma Mateus Lanzoni, estudante de Relações Públicas da UCS.

Bateu as 12 badaladas e ele parte para almoçar com a mãe Carmen, 48 anos, e a mana Larissa, 10. Tranquiliza-se com aquilo que vai encontrar: arroz e feijão com temperos da própria horta e o rádio tocando notícias e canções de amor perto do fogão. Carmen explica:

– Tirar uma pestana aumenta nossa longevidade. Ninguém atravessará a tarde roncando, é um esticar na rede, um deitar no sofá, sono rápido de caminhoneiro para simplesmente tirar a preguiça do corpo.

Betania Alves, 26 anos, é fã da cochilada criativa:

– Eu me sinto renovada, tenho mais energia. A sensação é que a tarde é um outro dia. O travesseiro é meu terapeuta.

– Passei a reclamar menos do serviço – completa Rochele Gomes Rodrigues, 17 anos.

A pausa municipal também favorece a criação dos filhos. Analise Frare, 54 anos, debita a firmeza de laços entre Juliano, 31, Carolina, 26, e o marido Volnei, 57, à possibilidade de comer sempre juntos:

– Observamos nossos familiares logo cedo, com tempo de intervir, não esperamos a noite para descobrir o que houve de errado. Os problemas chegam quentes e dormem frios.

Ronaldo Borsoi, 32 anos, proprietário de uma loja de brinquedos, enxerga mais longe, compara Garibaldi à Gália de Asterix e Obelix:

– A sesta é a poção do druida Panoramix, e nos diferencia no combate diário.

“Estamos no ano 2011 depois de Cristo. Todo o Rio Grande do Sul foi ocupado pelos workaholics... Todo? Não!
Uma aldeia povoada por irredutíveis garibaldenses ainda resiste ao invasor.”










Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 11/06/2011
Porto Alegre, Edição N° 16726
Acompanhe nossos vídeos em Garibaldi.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

ISSO QUANDO NÃO OCORRE FALHA DE CONEXÃO

Arte de Cínthia Verri

Todo mundo que começa a namorar não sabe ao certo que namora.

O início é confuso, entremeado de hesitações e receios e pudores e reservas e uma fileira de sinônimos sofisticados para medo.

Puro medo.

O casal demora a oficializar aquilo que já é público. Não quer melindrar sua companhia, muito menos oferecer motivos para receber um fora adiantado.

Eles se preservam do convívio para não caírem em tentação, recusam bares e festas para conservar o segredo. Estão loucos para contar aos amigos, mas temem que a fofoca estrague a notícia. Há a crença de que alegria espalhada se transforme em inveja.

Eu não sofro mais desse mal. Detectei a encruzilhada, o exato momento em que o namoro vira à esquerda e não tem mais volta.

É quando um dos dois telefona para não conversar. Para não dizer nada, coisa com coisa.

Suportar o laconismo amoroso é uma das torturas mais angustiantes da existência.

Acompanhe meu raciocínio.

No meio do serviço, ela liga. Por ansiedade, você atende ao primeiro toque. Espera que ela fale oi. Mas não. Ela espaça a voz como se fosse uma amante, uma sequestradora, alguém que não protegeu as teclas e acessou seu número por engano. Dá para escovar os dentes até surgir um tremido par de vogais.

Ela não lhe procurou em função de alguma novidade, para dar um recado, testar a temperatura ou planejar um encontro. Suspenda a objetividade, o mundo físico, a matemática, as operações de trigonometria.

Sua futura namorada ligou para suspirar. Compreenda que ela ligou para que você testemunhe o que ela está sentindo, como uma criança que coloca o fone em direção ao mar e jura que a os pais alcançam o barulho das ondas.

Ahhhhh é o som fundador de um papo que não vai acontecer. O telefonema corresponde à sonoplastia da saudade. Prepare-se para variações de um mesmo tema.

— Como você está?
— Meio estranho…
— Eu também…
— Mas é um estranho bom.
— Um estranho feliz.

Um repete o outro, num misto de fragilidade e receio. É um diálogo que medita sobre vazio. Durante trechos inteiros, nenhum fala. Uma conversa exemplar e inédita em que os dois somente escutam. Uma troca de respiros, jogo de vento, intercâmbio de palpitações.

Assim como ela discou sem motivo, o pior vem agora, não há como desligar sem ofender. Depois de quinze minutos de ausência absoluta de som, chega a hora de seguir a vida.

— Você desliga, eu não consigo.
— Não, você desliga, eu não consigo.
— Não, você!
— Você!
— Você!

O amor é uma grande coragem cheia de pequenas covardias.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 7 de junho de 2011

MAIS E MELHOR

Foto de Adriana Franciosi

8/06 (quarta-feira) – Canoas (RS), 19h30
27ª Feira do Livro de Canoas
Palestra Encontros com o Autor
Local: Praça da Bandeira
(51) 35922129

10/06 (sexta-feira) – Porto Alegre (RS), 8h30
Núcleo Regional do Rio Grande do Sul (IEL RS)
Palestra
Local: Centro de Convenções da FIERGS
(Av Assis Brasil, 8787)
Tel.: (51) 3347.8961

13/06 (segunda-feira) – Caxias do Sul (RS), 20h
Palestra para pais e alunos
Escola Mutirão Objetivo
Local: Auditório da Faculdade da Serra Gaúcha
(Rua Os Dezoito do Forte, 2366)



14 e 15/06 (terça e quarta-feira) – Brasília (DF), 20h
Programa Escritores Brasileiros no CCBB ano II
Ângela Vieira lê Carpinejar e Bidô Galvão lê Carpinejar
Local: Teatro I do CCBB Brasília (SCES Trecho 2, conjunto 22)
Telefones da produção: (31)38915318/ (31)38925993

17/06 (sexta-feira) – Rio de Janeiro (RJ) – 15h
13º Salão do Livro da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ)
Palestra sobre o livro A menina superdotada
Local: Biblioteca FNLIJ para Crianças
(Centro de Convenções SulAmérica 
(Av. Paulo de Frontin com Av. Pres. Vargas – Centro – RJ)
Contato: programacao@fnlij.org.br Tel/fax: (21) 2262-9130

20/06 (segunda-feira) – Canoas (RS) – 10h
Projeto Canoas para e lê
Leitura de texto
Contato: Jorge Luiz Padaratz - tecnica.sme.canoas@gmail.com ou 51-3428-4855

22/06 (quarta-feira) – Barra do Ribeiro (RS) – 10h
Projeto Autor Presente do IEL
Palestra para alunos
Local: Colégio Estadual Dr. Carlos Pinto de Albuquerque

28/06 (terça-feira) – Canoas (RS) – 10h
Projeto Canoas para e lê
Leitura de texto
Contato: Jorge Luiz Padaratz - tecnica.sme.canoas@gmail.com ou 51-3428-4855

28/06 (terça-feira) – Porto Alegre(RS) – 20h
Evento ONG Wiso
Palestra sobre o tema “Paixões”
Local: Plaza São Rafael
(Avenida Alberto Bins, 514)

29/06 (quarta-feira) – Canoas (RS) – 10h
Projeto Canoas para e lê
Leitura de textos
Contato: Jorge Luiz Padaratz - tecnica.sme.canoas@gmail.com ou 51-3428-4855

30/06 (quinta-feira) – Canoas (RS) – 10h
Projeto Canoas para e lê
Leitura de textos
Contato: Jorge Luiz Padaratz - tecnica.sme.canoas@gmail.com ou 51-3428-4855

TÁTICAS INFALÍVEIS

Arte de Arthur Bispo do Rosário


Quando adolescente, conservava a etiqueta transparente da loja na roupa. O ganchinho entre o lado de dentro e de fora da camisa.

O alfinete de plástico permanecia na gola. Tratava-se de uma isca.

Nenhuma mulher aguentava enxergar aquilo. Elas me paravam sucessivamente e faziam a gentileza de remover o lacre.


***

O golpe tinha 100% de aproveitamento. Mais letal do que uma gola desajeitada, que podia ser estilo. Ou que uma braguilha aberta, que podia ser atentado violento ao pudor.

As vítimas nem pediam licença, avançavam com as unhas sobre meu pescoço. Eu reagia com orfandade:

– Ai, obrigado, não havia ninguém para me avisar.

O lado maternal do mulherio acelerava com a ingenuidade distraída. Elas corrigiam o lapso, puxavam conversa e, no fim, pretendiam me adotar.

A sedução cresce nos detalhes. Assim como sobram táticas masculinas, há um truque feminino que nenhum homem jamais revidou.

Quando a mulher confessa que é frígida.

É um apelo irresistível, uma ária de sereia. A milícia cai em peso, indiferente ao seu estado civil e time de futebol.

Ao replicar com “Mesmo?”, o cara mordeu a senha e será devorado no fundo do Rio Guaíba. Eu já fui ludibriado quatro vezes na juventude. Por mais que repetisse a experiência, não reconheci a cilada.

A frase mexe com a vaidade do varão, com o ego de gladiador. Desperta o sonho primitivo de ser o Messias das fronhas, o salvador dos lençóis.

Quando escuta que ela nunca gozou, todo rapaz se enche de autoridade, já imagina o milagre: ela, atenta às instruções; ele, mandando na cabeceira da cama:

– Deita e goza!

É melhor do que ser o primeiro na cama; é tirar a virgindade do prazer. O homem sente-se o rufião dos gemidos, o encanador do internato, o jardineiro do convento. Não há como explicar o baque da declaração na alma viril.

A relação que era comercial ou residencial assume a condição de patrimônio histórico da Unesco. A namorada recebe regalias de gravidez. Neste caso, o cara tomba sua vida. É capaz de solicitar férias no trabalho para se dedicar ao assunto, para ajudá-la no firme propósito de mapear o ponto G. Não existirá nada tão importante quanto treinar posições e mostrar serviço.

***

Nem é sexo, porém filantropia sexual.

***

O prazer mais verdadeiro – às vezes – vem de uma mentira.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 7/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16723

sábado, 4 de junho de 2011

A CHAVE DA MOSQUITA

Foto de Adriana Franciosi

Adivinha quem tem a chave da terceira mais antiga igreja do Rio Grande do Sul? O padre? O bispo? O prefeito?

Não, a beata!

É ela que abre e fecha a imensa porta azul de seis metros da Igreja de Santo Amaro, em General Câmara, cidade de 9 mil habitantes, a 75 quilômetros da Capital. Para facilitar o controle, mora numa casa verde na esquina, ao lado da construção religiosa de 1787.

Elenita Terezinha de Souza Vianna, 61 anos, conhecida como Mosquita pela magreza de osso e hiperatividade, é a responsável há 21 anos pela belíssima igreja açoriana, que fica às margens do Rio Jacuí.

É ela que chama o sacerdote Fábio Lúcio Santos para a missa às 18h no domingo, que varre e encera as tábuas da sacristia, escova a pia batismal, prepara a mesa da hóstia e do vinho, lava a roupa e a toalha das cerimônias, puxa os cantos da celebração, toca o sino, corta a grama do pátio, fiscaliza goteiras, expulsa morcegos e demônios do assoalho e resolve problemas hidráulicos.

Sua vida é orar. Muda de ambiente conforme o estado de espírito. O ambiente muda seu estado de espírito. Quando fica chateada, reza na varanda. Magoada, senta no sofá da sala. Muito sofrida, desfia as orações sem sair da cama.

– O sofrimento vai me tirando espaço. Dor é quando o divino me põe de castigo no quarto.

Por um triz não renunciou a fé, e não cerrou as cortinas de seu aposento para sempre: quando seu marido morreu em 1994. A viuvez de Edílio Vianna fez sua esperança escurecer. Foram casados 26 anos, gerando quatro filhos (Solângela, 43 anos, Élida, 41, Alexandra, 39, e Lissandro, 31) e seis netos.

– Nunca briguei com ele. Foi meu marido, pai e avô. O luto durou nove meses, uma gestação ao contrário. O luto acabou, não a tristeza. Casei cedo, casei menina com 16 anos, casei na Igreja Santo Amaro em 1966, cuidar dela é ainda uma forma de cuidar do meu marido – desabafa.

Disposta a não ceder ao ceticismo, dentro de sua residência, está armada de cinco terços, duas flâmulas de Santo Amaro e São Jerônimo e três estatuetas de Nossa Senhora Aparecida, São Jorge e Santo Amaro.

– Decoro qualquer estante como se fosse um altar – confidencia.

Mosquita experimenta a autoridade de um diácono de saias. Ensinou catequese, encaminhou corpo, abençoou morto, passa a tarde dando conselho amoroso para o bairro.

– Eu mesmo erro, me penitencio e me absolvo. Sou um pronto-socorro espiritual, enfermeira da alma.

Mas quem espera uma beata ranzinza e repressora, de véu preto e verruga no meio do rosto, encalhada e invejosa, pode tirar o cavalo da chuva. Ela gosta de falar bobagem para facilitar a confissão. Não sofre de moralismo de calcinha (como ela diz), mostra-se generosa com as falhas dos amigos, tampouco esconde o que tem de ruim para parecer boa.

Órfã, com instrução até a 5ª série, aceita o que o destino oferece e não pede mais do que pode viver.

– Converso muito comigo. Rezar é reclamar para mim. Na hora de acender as velas, eu me xingo pelo hábito de guardar fósforo usado na caixinha de novos. Quem se xinga logo começa a rir.

Com os olhos espertos e uma loquacidade interminável, prefere economizar Deus a gastá-lo em longas leituras. É uma chocólatra dos evangelhos.

– Bíblia é como chocolate, leio um pedacinho por dia, senão tenho que fazer regime.

A chave é com ela, e só com ela, os vizinhos já decoraram o caminho da fé.

– Minha casa é de barro e pedra, sem cimento, tijolo por tijolo encaixado.

Elenita faz uma pausa e se dá conta:

– Igual à Igreja de Santo Amaro.

Homem e Deus são feitos do mesmo material. A Palavra.

Amém.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 28/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16713
Acompanhe os vídeos com a beata Mosquita.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

PASTELÃO

Arte de Cínthya Verri

Eu falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270!

Agora terei que esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da vigilância secreta de minha mulher.

Por enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de ter feito qualquer coisa.

Vem funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa podre; e ela nem estava comigo naquele momento.

Repare que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos eufemismos.

Fui quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço.

Fazia tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua, dos dentes e dos lábios.

O vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os pelos da barba.

Ganhei um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Ainda fui para São Paulo de tarde, o que agravou o mistério do corte.

Parecia marca de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me proteger de crise conjugal.

Ao descer de volta a Porto Alegre, no aeroporto Salgado Filho, Cínthya não esperou que colocasse a mala no bagageiro:

— O que é isso?
— O quê?

Eu me fiz de mal-entendido porque lembrei que não poderia contar a verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema, mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu colesterol, não tinha jeito.

— Como não sabe? Parece uma mordaça…
— Hein?
— Um arranhão de mulher?
— Não, tá brincando, né?

Com objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão que depende de novos detalhes e vai corrompendo o arquivo rígido e contamina a memória desde o nascimento.

A mentira cresce a tal ponto que não existirá forma de recuperar o início. E deixará de fazer amizades para recrutar cúmplices e álibis.

A dificuldade de expor uma vergonha facilmente perdoável, um pecado comum, nos faz amargar a condenação capital de um crime. Os constrangimentos simples, não os grandes, sempre nos conduzem à pena de morte.

— É obra de uma vadia?
— Não, não…
— É herpes?

Quando ela mencionou herpes, percebi que o colesterol não é nada perto do ciúme, então gritei:

— Eu me queimei com um pastel. Foi um pastel, foi um pastel!



Crônica publicada no site Vida Breve

TEORIAS DO EU

Miguel Sanches Neto
msn@interponta.com.br

Carpinejar, além de poeta e cronista, tornou-se personagem de si mesmo. Foto de Renata Stoduto

A persona do artista é o principal mecanismo de formação de leitores. Segundo A. Alvarez (A Voz do Escritor, Civilização Brasileira: 2006), isso acontece porque, nas escolas e nas universidades, não se ensina mais a ler literatura, cabendo à mídia forjar ícones a partir de excentricidades. O autor se torna um marqueteiro de seu produto, como forma de sobrevivência num meio de festas literárias, entrevistas, oficinas e participação em programas de televisão, canais que drenam leitores para os títulos que de outra maneira passariam despercebidos. Com a consequência, segundo Alvarez, de que hoje “o artista não é mais alguém que use as suas habilidades e sua percepção para criar uma obra de arte com vida própria; não, ele é um showman, uma personalidade pública, cuja principal obra de arte é ele mesmo.” (p.133). No caso do Brasil, isto é mais intenso dada a nossa tendência para a autobustificação (o termo é de Ivan Lessa) que a crônica permite. Neste gênero, o eu é a peça-chave, o que faz da crônica o lugar literário da construção de nossa personalidade pública.

E a grande personalidade pública da crônica brasileira Contemporânea é o poeta Fabrício Carpinejar. Borralheiro: Minha Viagem pela Casa traz crônicas rápidas e românticas, que giram em torno do papel do homem na relação, um homem agora alegremente do lar. Da comida à arrumação, do problema da diarista à recepção da mulher que chega do trabalho, do cardápio às táticas amorosas, da compra de roupas à ida aos salões para pintar as unhas, Carpinejar trata de questões antes tidas como femininas, sem deixar de falar de bebida, futebol, ereção, enfim, essas coisas de homem. No centro dessa aventura estão o autor e sua mulher, um casal moderno e divertido, que torna a vida conjugal de todos um tanto apagada. Por isso se tornam heróis domésticos.

Reinvenção da cidade

Como construção, as crônicas de Capinejar têm grande agilidade. Usando as malícias do poeta, ele inverte pontos de vista, cria metáforas cotidianas, surpreende estabelecendo paralelos inusitados, sempre em frases afiadas. A sua crônica, na grande maioria das vezes, não é narrativa, mas dissertativa. O cronista se faz o filósofo da vida banal, e tira dela pequenas iluminações, como: “Amadurecer é não estar preparado” (p.239). Há uma recorrência dessas frases fortes, que sobrepõe os fragmentos ao todo da crônica. É a identidade do poeta habituado ao twitter que se manifesta nos melhores momentos que cada uma de suas crônicas tem.

Algumas, no entanto, funcionam como conjunto e não apenas nas frases brilhantes; nestas crônicas, o autor se revela em todo o seu potencial criador, como em “Greve”, em que ele fala da necessidade de o poeta ter uma modelo nua para poder escrever; ou em “Cuidado com o Que Ela Sonha”, uma história borgeana do perigo que representa a maneira como a amada nos vê nos sonhos; ou ainda na memorialística “Casinha de Salva-vidas”, sobre um amor de verão que nunca termina.

Os textos do livro trazem sempre a mesma estrutura narrativa: uma sucessão de frases organizadas em torno de um tema, que o expandem de maneira acelerada. Uma frase puxa a outra que puxa a outra, criando um som monocórdio, em que as palavras não dançam, antes marcham. Há também uma obsessão pelo verbo ser, próprio para definir as coisas, uma vez que o cronista é essencialmente um divertido definidor. A repetição da primeira pessoal verbal é outra marca do texto, que vai assim construindo não apenas uma imagem do autor, mais um discurso amoroso sobre ele próprio, dentro da lógica de valorização da marca: “Acreditei em mim porque ninguém iria acreditar em meu lugar” (p.238); “Não é fugindo que me tornarei importante na minha vida. / É amando o que me faltava amar: eu” (p.238). Com este amor ao próprio eu, teorizado em cada uma das crônicas, e um visual performático para aparecer em público, Carpinejar fez a fusão de literatura e showbiz.

Serviço: Borralheiro: Minha Viagem pela Casa , de Fabrício Capinejar. Bertrand Brasil, 256 págs., R$ 29.

Publicado no jornal Gazeta do Povo
Caderno G
Curitiba (PR), 29/5/2011