Enquanto acendo as luzes da casa, ela as apaga.
Uma por uma. Como se fosse uma sombra me economizando, me escoltando.
Se amo as mulheres, se nunca desisto de amar as mulheres, se admiro as mulheres, é também por ela: Cléo, minha empregada.
Ela é meu anjo moreno de cabelos crespos, minha mãe, minha irmã, minha confidente.
Já me levou no colo quando estava exausto para repor os caminhos. Já velou meu sono na sala quando não me restava ânimo para acordar.
Recolheu minhas roupas no porre. Recolheu minha estima em separações e me colou com bonder na manhã seguinte.
Nunca estou sozinho, porque minha solidão tem as janelas abertas pela Cleunice.
Nunca sou longe, ela vem de catamarã com a simplicidade de quem caminhou apenas duas quadras.
Já a vi chorar no meu lugar, já vi me defendendo da indiferença, já vi brigar com raiva em nome de minha paz.
Ela é um romance inédito. Foi separada, viúva e agora vive casada. Quando fala, meus ouvidos deitam. Sua memória é meu melhor conselho.
Sofreu bem mais do que eu, e me cuida como se meu sofrimento fosse único. Não subestima as pálpebras pesadas.
Ela ri no momento errado para torná-lo certo. Quer me explicar, com suas echarpes coloridas e suas botas de cano longo, com seu batom escuro e seus brincos de argola, que a alegria nos devolve a humildade. Todo triste é arrogante, por sua vez o temperamento alegre se dedica a carregar as pedras dos pensamentos sem reclamar.
Quando enfrentei dificuldades, Cléo me trazia uma camiseta do Centro Espírita para vestir na hora de dormir. Durante um mês, benzia o pano e me alcançava. Fora do horário de serviço, em sua folga.
Há pessoas que nos amam neste e em outros mundos. A fé ainda pode ser muito visível para o olfato: ela é minha santa, minha protetora, minha benzedeira.
Não tem ensino universitário, mas ninguém lê meus textos com tamanha devoção. Ela reza meus textos. Copia frases de crônicas que ainda não foram publicadas em seu Facebook – a impressão é de que me tornei seu plágio.
Ela tem 1m53cm, mas é imensa. Quando a observo, meus olhos vão para o alto: sua estatura é do tamanho da voz.
Ela canta quando cozinha. Já comi várias de suas canções.
Ela acolhe meus filhos como se descobrisse minha segunda e terceira infância.
Sempre ela, sempre presente: Cléo completa 50 anos, e os dois anos que dividimos são séculos de amizade, séculos de admiração, séculos de afinidade.
Enquanto a casa vai no escuro, acende uma por uma das velas.
Por mim. Por mim. Por mim. Por mim.
Sou feito de sua chama. E de sua concha das mãos me guardando para quem me mereça.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17542
13 comentários:
Muito lindo, adorei, poético, compartilhado, amoroso... Um completa o outro, parabéns! Adoro seus textos, são bem trabalhados, detalhados, existe um "eu"particular de seu "ser" que reflete magia, parabéns Carpinejar!
Ahh queria uma Cléo tbm! Para lavar minhas feridas, estender minha alma!
Fabrício... sua sensibilidade é de doer na alma.
Beijos! Que seja doce a sua vida.
Muito bacana! Lembrei de vários momentos da Isa, a minha empregada, que também tem esse perfil. Fiquei pensando o que seria de nós sem elas...
Chorei...
Ai Carpinejar , qualquer hora você acaba me matando . Morri hoje de arrepios , morri hoje de lágrimas . Lindo, lindo ,lindo texto ! Um dia alguem merecerá toda a sua humildade, um dia alguem merecerá seu pequeno coração gigante e eu estarei viva pra ver !
Carpinejar tem um olhar igual a todas as pessoas, com uma unica diferença, pq ele coloca a tona o que já é sabido por todos,não se calar,coloca as emoções para fora,os sentimentos, enquanto os outros preferem ser indiferente ao mesmo olhar...Parabéns Carpinejar... Você vai ser o texto do meu TCC,Se mim permitir.
Bela homenagem,Fabricio...muito tocante..Parabéns!
Lindo, como sempre!
Eu raramente comento publicações. Sempre tenho a impressão de que há uma linha que hierarquiza o autor do leitor. E o apego ao meu "ego" é recrudescido no admirar sem elogiar.
Parabéns Carpinejar, sou leitor frequente de teus textos.
A beleza e a experiência, vividas a cada leitura, a identificação com as situações e o se sentir tão individualizado, coletivizado e exposto gostosamente ao mesmo tempo é fantástico.
Não deixe de criar, reinventar, e se transformar.
Não sei se vale e se você ler os comentários. Mas se um dia possível for, gostaria de ler um texto sobre quem ama mudar.
E não é que o feio embelezou-se nas palavras ;)
Na contemporaneidade eu achei um dos meus autores prediletos, até porque reconhecer o hj, é mais divertido que aplaudir apenas o ontem.
Amei a crônica. Chorei. Vc é um sortudo por ter alguém assim, mas também ela, por ser tão amorosamente reconhecida. Respeito não se impõe, mas se conquista devagarinho, e uma amizade tão linda como a de vcs (agora NOSSA) é algo de valor inestimável. Parabéns pela sensibilidade - na vida.
Wow!! Que lindo, emocionante mesmo. Nao somente porque ela da, mas principalmente porque tu reconheces desta forma verdadeira e poetica.
Um abraco com carinho desde Texas e obrigado por me faz compania nesta manha de sol. Simone
Vi você pela primeira vez no programa do Jô, esse que passou há uns quinze dias atrás. Achei a sua sensibilidade bem-humorada fascinante. Estou adorando seus textos, são diferentes de tudo que já li...
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