Minha filha saiu de casa para morar com o namorado.
Estávamos estremecidos. A gente não se falava tanto quanto antes, não nos perguntávamos tanto quanto antes.
Os telefonemas e os encontros foram ficando econômicos, com pausas apressadas e interrupções súbitas.
Dois cachorros magros escondendo as vozes como ossos no quintal.
Ela tem 19 anos, já é adulta e não aceita coisa alguma que seja imposta e que fuja daquilo que planejava.
Eu sou pai, e minha chatice é eterna, não escapo da preocupação com o futuro e com a universidade que pretende cursar.
Incomodo mesmo, recupero o assunto do vestibular sempre que abre uma brecha. Ela se irrita com a pressão.
Decidi ser duro, inflexível, ganhá-la no cansaço. Acredito que, com paciência, a ditadura poderia render frutos.
Só que a vida não pede para que a gente tire os óculos para nos bater.
Com o divórcio, eu adoeci e a filha armou uma trégua e veio me cuidar. Dar sopa, chá e oferecer seu olhar caído para levantar o meu.
Desde que viu seu pai enfraquecido, ela mudou. Ou eu mudei. Na verdade, ambos mudaram. Não existe mudança no amor que não seja recíproca.
Mariana assumiu o posto de conselheira e sentei na cadeira de aconselhado. Invertemos os papéis. Ela me ajudando a entender e organizar o passado e eu, absolutamente surpreso e estarrecido com sua maturidade.
Meses de intensa troca, convívio miúdo e a certeza de que não perdemos em nada de nossa intimidade.
Mas faltava algo, faltava atravessar uma fronteira entre as palavras amenas e educadas. Ainda era gentileza. Ainda havia formalidade entre nós.
Faltava algo que somente tive em sua infância: que demonstrasse uma fé, uma confiança, uma esperança em mim mais do que em qualquer homem.
Quando regressávamos de viagem de São Paulo, testemunhei o milagre.
Lado a lado, no meio do voo, ela adormeceu em meus ombros.
Fazia muito tempo que eu não vigiava seu sono. Fazia muito tempo que não se entregava ao cheiro de meu casaco. Fazia muito tempo que não controlava sua respiração.
Naquele instante, com a mão trocada, acarinhei seus cabelos e cantei baixinho sua música de ninar: “Lá vem a morena subindo a ladeira, com o pote de mel, um pote de luz, bem perto do céu...”.
Ela regressou ao meu colo, ao colo de pai, que é muito mais importante do que voltar para casa.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17549
15 comentários:
#Shorando
#AmorDeVerdade
Raros são os pais que aceitam a maturidade dos filhos. E quando o fazem, já estão muito velhos, já se despedindo da vida.
seu texto me trouxe lágrimas. É lindo.
Quero ter este colo para oferecer às minhas crias crescidas, criadas.
beijo
Tenho um filho de 05 anos e já me vi nessa situação. Senta do nosso lado uma dor e alegria. Um amor verdadeiro para todo lugar.
Admiro o homem que sabe ser pai, que tem noção da importância de dar colo e acolher. Quem sabe quem está mais maduro é vc.Um beijo, parabéns!
Lindo relato, lindos sentimentos, amor, compartilhamento.
Colo para ela seu e dela para vc, colo para todos que precisam de colo :)
Maravilhoso seu relato.
=)
Lindo como tudo que escreve.... meu filho hj tem 21 anos e eu o amo cada dia mais....
Quanta emoção e sensibilidade, num texto simples e tocante. Muito bom!
Eles sempre caberão em nosso colo. É importante que saibam disso e que se sintam a vontade para receber esse afeto. Entendo o incômodo quanto ao constrangimento que vivenciaram. É como se fosse responsabilidade nossa manter esse caminho sem qualquer barreira.
Zoraya Silva
Fiquei feliz de ouvir
O verdadeiro amor não morre, só adormece para acordar mais sólido. O amor de entes queridos é construídos na infância e este elo jamais se perderá. Tenha certeza que vc deu o seu melhor. Felicidades para a família.
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