quarta-feira, 16 de setembro de 2015

BRAÇO DIREITO

Arte de Eduardo Nasi

Meu pai estava desesperado.

Sua mulher Elza, companheira de três décadas, enfrentou complicações na coluna, problemas sérios na bacia. O andar travou e apresentava fragilidade até para falar.

Vocês não conhecem o meu pai como eu: ele é um gurizão de 76 anos. Uma criança grande. Tudo o que ele faz mostra para sua esposa.

É dependente. Amorosamente dependente.

Ela carrega a casa: controla o mercado, prepara a comida, cuida das roupas e dos eventos, orienta os mínimos detalhes da rotina.

Quando ele esquece um autor ou um amigo, ela vem preencher as reticências do esquecimento. Casal quando se ama vive fazendo palavras cruzadas em qualquer conversa.

Sem ela, o pai desmorona. Não existe. Desaparece. Não saberá ligar o fogão. Ficará confuso entre os controles do ar-condicionado, da televisão e da net.

Ele cedeu para a sua mulher o domínio do mundo. Não foi uma submissão, mas confiança.

Jamais o vi confiar tanto em alguém como em Elza. Tanto que a chama de Elza dos pássaros. É sua migração, é seu voo, é seu ninho.

Em seus livros, todos os seus livros, há sempre um poema ou uma referência a ela. Vive criando dedicatórias para compensar a dedicação.

Tomam café juntos, leem jornal juntos, almoçam juntos, sesteiam juntos, passeiam juntos, jantam juntos, assistem novela juntos. São parceiros, cúmplices, confidentes, melhores amigos, amantes.

Não se largam. O pai tem uma cadeira vaga para a Elza em seus olhos verdes. Cadeira de praia. Já seus cílios são o guarda-sol.

Na íris paterna, no fundo mesmo, sua esposa está lá cantando chansons d’amour rivalizando as ondas do mar.

Quando Elza adoeceu, ele enlouqueceu de aflição.

Para complicar, ao mesmo tempo, ficou com uma dor tremenda no seu braço direito, que usa para escrever.

Não tinha como anotar uma frase que doía (meu pai redige primeiro à mão em seus caderninhos e somente depois passa a limpo no computador).

Por mais que tentasse, a letra não se levantava da cama das linhas. O pulso ardia, fisgava, não permitia movimentos mais longos entre os dedos.

A caneta não obedecia ao raciocínio, logo escorregava para o gemido.

A inspiração havia sido levada pelo mau humor do osso e indisposição dos nervos.

Mas ele nem se deu conta de que sua lesão foi uma coincidência clarividente.  Seu braço parou porque Elza é seu verdadeiro braço direito.








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 16/09/2015

6 comentários:

Ene disse...

Maravilha de texto!
Conheço Elza em um dos poemas do Nejar, "Os anos Elza"...

Parabéns pelos seus escritos: Sempre perfeitos"

Luiza Versamore disse...

Adorei. Como sempre!

Marta disse...

Lindo!

Marta disse...

Lindo!

Moni disse...

Grandioso!!

Aliny Cristina disse...

Incrível! Amei o final, mto perpicaz!