quinta-feira, 9 de junho de 2016

NÃO ENTRA E NÃO SAI



Fabrício Carpinejar
Foto de Gilberto Perin

Criar culpa é a arte dos separados, em especial daqueles que largam uma relação para cumprir projetos pessoais.
É o ilusionismo de transformar o ex em segunda opção, no caso de tudo der errado, e ainda soar sensível e preocupado ao preparar as malas.

Estranhe o fim quando o personagem que abandonou a casa confessa saudade ou se mostra extremamente agradecido. Tem algo errado.
Está lidando com um oportunista, não emana pureza e inocência em seus gestos.
É o tipo que não entra e não sai, instaurando uma pendência sentimental, uma linha de crédito baseada em dívidas.

Mantém a porta aberta, dizendo que ama muito (quem ama muito não vai embora), estabelecendo dúvidas, defendendo o desfecho provisório e confiando na ação do destino.
Finge gentilezas, simula contatos, em situações misteriosas. Telefonou uma vez e disse que não foi atendido (não há registro do número), chamou pelo interfone e não teve resposta (quando você estava em casa).

Na verdade, apenas tentou na teoria. Fez um esforço teatral, mas não adotou nenhuma atitude prática e definitiva para a reconciliação. Ensaiou, só que não subiu no palco. Realizou declarações de paixão eterna, confessou que nunca esquecerá a convivência, chega ao ponto de dizer que o lugar ficará vago. Aproveita a fragilidade da vítima para exercer uma hipnose do mal.
Não termina definitivamente o relacionamento, disfarça o fim com a esperança de uma possibilidade mais para frente.

Não vira as costas, despede-se andando de costas, como se estivesse vindo, jamais se distanciando.
Não caia neste jogo messiânico. É preferível estar de pé e desconfortável a comprar uma cadeira no céu.

Quantos partem e deixam a culpa como sósia?
E quem fica não muda os seus hábitos, permanece esperando o retorno que pode não acontecer. E quem fica passa a se desculpar, a achar que não foi bom o suficiente, a querer fazer surpresas e provas para reconquistar a sua condição de prioridade (quando deveria ser o contrário). E quem fica declina de convites para não se comprometer com nada e estragar uma hipotética reaparição daquele que ama.

Criar culpa é montar um cativeiro, a tirania de prender alguém no passado a pão e água. Criar culpa é imobilizar o amor. Criar culpa é egoísmo. Criar culpa é mentir que as escolhas não foram feitas e que estão abertas. Criar culpa é enfeitar a dor com poesia. Criar culpa é confinar o antigo cúmplice a reconstituir as lembranças até enlouquecer. Criar culpa é aproveitar viagens e festas enquanto o outro pena em silêncio, é experimentar novas relações enquanto o outro não mexe uma vírgula de seu obituário.

O que parece mágica é truque. Amar é também não prolongar o sofrimento da perda.

Publicado no Jornal O Globo no Blog do Fabrício Carpinejar
Coluna Semanal
09.06.2016

Um comentário:

Bárbara disse...

Simplesmente fantástico e verídico!