segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

QUANDO EU CANTO

Foto de Gilberto Perin

Quando estou feliz, canto. Quando estou triste, canto.

Não é preciso ter razão para cantar.

Vou cantando sem saber a letra, errando uma ou outra rima, esperando o refrão para ir junto de novo. Canto com o rádio do pensamento ligado à toa, numa estação remota da memória.

Canto para não dizer tudo o que resta a dizer. Para guardar um amor na letra. Para despejar um amor que estava na letra.

Canto como quem tenta distrair a falta. Canto como quem põe perfume na voz. Canto como quem toma banho na linguagem.

Canto para me sentir na estrada, livre, sem ninguém para julgar o meu escândalo cantando.

Canto para interromper uma morte.

Canto para sarar palavras feridas.

Canto como quem dá um conselho a si mesmo.

Canto ainda que com timbre desafinado, arranhado, rouco de gripe.

Canto para despertar o apetite.

Canto irresponsável como um guarda-chuva em tempestade.

Canto festivo como um guarda-sol em praia radiante.

Canto para cessar a sombra, multiplicar a claridade.

Canto quando pago as contas, canto para esconder as dívidas.

Canto para brindar a solidão.

Canto para chamar os amigos.

Canto para ultrapassar a mágoa, para não ter motivos.

Canto para desobedecer as ofensas, para brigar com os traumas.

Canto para fazer drama, para exagerar os gritos.

Canto para entender os problemas, para não mais entender os problemas.

Canto para lembrar das cantigas de ninar da mãe, canto para desafiar o silêncio severo de meu pai.

Canto para mastigar o mundo, triturar o gelo da indiferença.

Canto para jogar uma pedra no rio e produzir movimento no dia, ver a beleza dos círculos.

Canto para importunar os vizinhos, para assustar os pássaros, para gerar piedade nos filhos.

Canto para me curvar à vida.

Canto para sair do meu canto.

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