quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CACHORRO MAGRO

Arte de Cínthya Verri


Minha mãe costumava afirmar que o gato gosta da casa mais do que do dono. O dono pode ir embora, o gato permanece. Nunca tive gato para confirmar o provérbio. Mas sou totalmente cachorro. Não importa tanto a casa, mas a dona. Vou onde a dona estiver. A dona é minha casa. Farejo, sigo atrás, abano os olhos, preparado para as sentinelas mais longas na calçada e para as insônias mais ébrias dos bares.

Já tive duas residências, tantas, eu me separei e nenhuma ficou comigo, não é despojamento, é escolha, não posso ter tudo. Renunciei apesar de adorar o trânsito suave dos aposentos, o escritório repleto de luminárias, os penduricalhos das viagens, a decoração excêntrica, as poltronas de leitura e de cochilo, a biblioteca imponente.

Abandonei todos os cantos apesar de minha inclinação caseira. Apesar de ser feliz com um paninho e um lustra-móveis; o lustra-móveis é um dos meus cheiros prediletos, retirar o pó e girar os dedos pela mesa e encostos imprimindo um cuidado demorado, próprio de toca-discos. O dedo tremendo a agulha da unha; nas faixas da pele, algumas canções de Elvis Presley.

Vejo que não dependo de um teto, até as estrelas são hospedaria. Preciso de uma esposa que me distraia de mim. Por ela, sou um cachorro magro, sempre com fome. Um pouco obsessivo, muito ciumento, mas leal. Não me canso de chegar.

Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher.

O temperamento canino me rende confusões. Quando amo, nunca encerro um relacionamento, ameaço o fim para logo resolver a conversa e as diferenças. É como um blefe, um ultimato, derradeiro recurso de oratória. Bem prepotente, tipo ou concorda comigo ou me perde.

O impasse é que Cínthya — prática e objetiva — leva a sério cada palavra, não passa pela sua cabeça que é uma metáfora. Não concorda com a malícia do desespero. Tem razão: eu me encho de espuma e de raiva, complicado discernir o que é improviso do que é roteiro. Eu acabei o namoro várias vezes, e ela infelizmente acreditou. Não era para acreditar. Seu papel era de resistir, de mostrar minha tolice.

Se arrumava a mala, ela me ajudava. Se pulava do carro, ela acelerava. Um saco, não tinha graça. Sem plateia, desisti da estratégia arriscada. Hoje termino comigo antes de terminar com ela.

E parei para refletir de onde arrumei a mania. Notei que na infância nunca partia ou entrava pela porta da frente. Reservava a campainha para as visitas. Meu caminho se desenrolava pelo portão do lado. Ia à escola, discreto, a partir do quintal, impregnado do perfume das laranjeiras nas golas brancas. A minha volta também acontecia pela cozinha, na véspera do almoço, para direto mexer nas panelas e descobrir qual seria a comida.

Na briga, é assim mesmo, não existe a porta da frente, apenas a porta dos fundos, que desemboca no pátio. Meu adeus é uma falsa despedida, um aceno confuso. O pátio ainda é casa apesar de sugerir que fui para longe. Seria a avenida da própria casa. Um corredor por fora do quarto.

Na verdade continuo no terreno. Como um cachorro, espero ser chamado de volta.



Crônica publicada no site Vida Breve

23 comentários:

Alinhavando idéias disse...

"...impregnado do perfume das laranjeiras nas golas brancas"

Acordar com essa poesia toda, num desenrolar 'vira-lata' de informação masculina, não tem o que pague.

Brigada mais uma vez Fabro

beijos

Anônimo disse...

"Na verdade continuo no terreno. Como um cachorro, espero ser chamado de volta."

Fantástico, ótimo texto. Essa parte aí de cima todo homem já fez ou faz hahah

Bom dia

O Neto do Herculano disse...

Para uma mulher perdigueira
um cachorro magro.

Historias de mulher disse...

"Na briga, é assim mesmo, não existe a porta da frente, apenas a porta dos fundos..."

Caiu como uma luva, para minha mão esquerda.Nossa quando a gente acha a porta da frente sem volta e sente que a porta do quintal se fechou ai é seguir em frente.
Vamos lá.
Obrigado!

Dja disse...

ola!! Bom dia!! "Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher." hummmm rs a mulherada vai tudo cair em cima de vc, (eu acho rs) adorei o texto, bjinhoss e se cuida.

Anônimo disse...

Fabrício !

Meu namorado é igual a Cínthya !!

Imagino sua angústia ...

bjs

Anônimo disse...

Já diz a sabedoria popular: "Cão que ladra, não morde"...

E depois dizem que mulher que é complicada! rs

http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

Anônimo disse...

Parabéns! Creio ter sido este o mais belo e fiel ladrar que já vi. Hi! ladrar a gente ouve, ou vê? Auuu! Este belo ladrar aqui foi é lido! Não importa o sentido. O importante é a beleza com a sua insana essência, fielmente ladrou aqui. Parabéns! Abraços de luz! Welinton -Santo Antonio do Itambé- MG (welintonmagno@yahoo.com.br)

Gabriela disse...

Você é inteligentissímo, adoro seus textos! Eu passei anos tentando sair com o meu atual marido e depois mais um ano até ele (depois de muito discutir) resolver me namorar e então fiquei na minha cabeça que só terminaria o namoro se fosse pra não voltar mais e hoje casada eu penso o mesmo. Briga de pessoa madura se resolve com diálogo e não com birra.

Anônimo disse...

Sabe que o papel de vocês, em relação ao gênero está inverto, né não?

Maria Cláudia Cabral|Aika disse...

meu tiro saiu pela culatra. não era ameaça, estava mesmo muito aborrecida. com raiva, vamos ser explícitos, magoada. ele levou tão a sério. desistiu de tudo, até de morarmos juntos, decisão tomada semanas antes. ele se fechou. e eu, levei sonhos de valsa e uma meia verde esquecida no meu armário. tratou-me como a um vendedor de enciclopédias, não me ouviu despedir (devia tê-lo feito rápido), perguntou se queria sentar, faltou pouco oferecer um café. entrei, fechou a porta, mas não trancou. tranquei eu. meu corpo tremia, arranquei-lhe um beijo que foi correspondido, mas sem abraço. fiquei deixando o beijo, não senti resistência. perdi o homem que amo. virei e parti.

Anônimo disse...

Homens costumam ser assim mesmo. Sempre querendo voltar pra dentro de casa só pra não dormir no sereno.

abraço

Anônimo disse...

concordo com a gabriela: briga se resolve com diálogo. Mesmo o fim precisa ser anunciado de forma clara. Temos(todos nós) o direito de saber o motivo, a causa, o erro...nem sempre pra tentar corrigir ou salvar algo...já que às vezes, nem vale mais a pena...mas simplesmente porque precisamos sempre conversar..feito gente adulta. Pra poder ir embora de forma consciente, tranquila...como uma morte natural,...Apenas o fim.

Milena disse...

AMOR é CONFUSÂO! É essa avalanche de sensações que a gente nem tem razão de sentir, ou talvez paixão... A paz que tu mencionas, não seria possível..pq senão, quem tiraria nossos pés do chão??
MARAVILHOSOS TEUS TEXTOS!!
Parabéns!

Dalva M. Ferreira disse...

Uau!

Mil disse...

Você lê nossos comentários? Sei que é muito ocupado, mas seria ótimo para nós, leitores, que vez por outra você desse o ar da graça por aqui, só pra gente ter certeza que é lido!...

Bem, adorei seu texto. Tem sentido, é coerente com algumas realidades e faz a gente crê que se tira poesia de tudo mesmo... do triste, do alegre e do pobre do cachorro. Metáfora mais que ótima, diga-se de passagem! Eu gosto dos cachorros. Não consigo simpatizar com gatos. E desejo que haja sempre uma porta aberta nas suas moradas...

E esse trecho: "Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher." Ele nos faz agradecer a você por existir! Obrigada.

Ana SSK disse...

Dizem "perdido como cachorro em dia de mudança".
E não é?

Mileny disse...

ADOREI!!!


Beijos!!!

Maraguary disse...

"Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher."
Serão todos os homens assim? Ai, ai, Fabro... Só você pra nos deixar sempre um ponto de interrogação!!!

Unknown disse...

Meu marido já passou por duas separações. Resultado é que, em qualquer desentendimento mais enérgico, ele me perguntava, olhos atormentados: mas você vai me deixar? Até que ele entendesse que ele era tanto a casa quanto eu e que as palavras pretendiam apenas dizer o que diziam. E para quem escreve, Fabrício, as palavras quase sempre querem dizer o que dizem. Como pedir do outro que não leve a nossa palavra a sério, os que vivemos dela? Assim como os que dizem que amam, sem amar, ou que está tudo bem, sem estar, os que dizem que vão embora sem pretender verdadeiramente partir também estão a faltar com a ética aos seus parceiros.

O psicolouco disse...

"Hoje termino comigo antes de terminar com ela."

Nunca tinha pensado nisso. RS...

Já sei o que fazer.

Grande abraço!

Kalyne Almeida disse...

CARPINEJAR: um "cara" que tenta conhecer sua "cara-metade". Raridade

Abraços de volta ao lar.

Valter Maia disse...

CARPINEJAR-O Genio das Letras...
Ainda não li nenhum livro seu..
Mais vo sair a procura..

Todos quanto leio comento aki..
http://explosaoliteraria.blogspot.com/

Um abraço