quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O FIM DA INVENCIBILIDADE

Arte de Cínthya Verri


Cínthya deitou com uma máscara de vitamina C. Em posição de coma. Armei de cismar que ela não me dava atenção. Era uma provocação que cresceu em insistência e migrou para o insulto. Avisei que se tratava de uma brincadeira, sempre uso essa manha quando ultrapassei o limite. Outra tática para me isentar da grosseria é alegar que lhe falta senso de humor. A convivência de dois anos anulou a força do meu repertório.

Eu erro e não me retrato. Ela me pinta de demônio e não suporto. Logo acho que estraguei sua confiança e que deixou de me admirar. E, curiosamente, fico ofendido com a minha ofensa.

O ímpeto é fazer as malas e desistir. O desencanto aumenta diante da lembrança do final de semana harmonioso — estávamos ternos, não colocávamos sequer os abraços para lavar.

Não consigo reconhecer a falha, e o fato de quebrar a sequência de vitórias. Quem fere é mais orgulhoso do que aquele que é ferido.

Como não reprimi a risadinha do canto da boca, o iodo da malícia? Como entrei naquela tranqueira? Por que falava barbaridades e depois repetia as sentenças editadas, transmitindo a impressão que minha mulher entendeu errado? Ou por que pedia desculpa e descontava a responsabilidade nas próximas frases, até que o perdão tivesse perdido o sentido? Avançava duas casas no entendimento e recuava mais cinco com “não disse isso”.

Já cansado, desabafei para Cínthya:

— No momento em que a gente acerta o ponto, desmanchamos o equilíbrio.

Ela me jogou os dados dos olhos:

— Nenhum casal acerta o ponto, a arte é ficar próximo dele.

Aquilo me acalmou, mantinha uma fantasia romântica: ou era uma felicidade imutável ou não era. A derrota naquela noite significava o fim da invencibilidade, não o fim do relacionamento.

Toda vida eterna é provisória. A tranquilidade é cheia de alternâncias. Serão semanas de infindável paciência, de alegria intacta, e algumas horas de ressentimento e azar. Nada vai mudar. Até o mar tem dias de ressaca. Não podemos aumentar a exigência a cada questionamento, formular paranoias e teorias de conspiração, esperar desmascarar nossa companhia. No fundo, ninguém se ama o suficiente para ser amado.

É aceitar o desvio e retornar para perto do ponto. Aproximar-se com a igual gana do início, esforçar-se novamente para conquistar a empatia da solidão. E nunca ter controle sobre o resultado.

Dormi também com uma máscara. Foi a penitência que ela escolheu. Precisava hidratar a pele e os hábitos. E ser um pouco ridículo para não me levar a sério.



Crônica publicada no site Vida Breve

16 comentários:

Anônimo disse...

Acho que já nascemos com essa necessidade, de machucar e não saber pedir perdão...Pelo menos no meu caso não tem jeito, se o ofendido não me perdoa não posso continuar minha causa.

Anônimo disse...

O ponto sempre assusta um pouco, não? É, a felicidade também encarcera, aprisiona como a tristeza. Precisamos nos libertar, nem que seja por um instante. O instante do ridículo.

Rita Brant disse...

Adorei! Bjs muitos bjs pra vocês da Rita

Ramiro Conceição disse...

Feliz Ano Novo
a você, Fabro, e também à Cínthya...


MOVIMENTO PERPÉTUO
by Ramiro Conceição


Se, por mais imbecil que pareça, tudo é ilusório.
Então por que poucos são donos do transitório?
Ora… porque muitos almejam ser muito pouco.

Assim, os poucos, que nunca foram tão burros,
inventam todas essas histórias da carochinha
pra que os muitos virem burros de carrocinhas.

Tal aluamento tem de ser resolvido aqui,
entre os nossos atos repletos - de afeto.
O celeste ensina: o movimento perpétuo!

Madjer disse...

Olá sr. Carpinejar,
comecei um blog a pouco tempo, olha lá:

http://satelitesinteriores.blogspot.com/

...

Poeta Da Colina disse...

É preciso ceder, pois é preciso ser recíproco.

Carolina Zimmer disse...

Fantástico! Adorei a parte que diz "no fundo ninguém se ama o suficiente para ser amado"...é a pura verdade.
Feliz Ano Novo!

Buba Lima disse...

Adoro quase tudo que você escreve. Lindo!
feliz Ano Novo.

Unknown disse...

que beleza! tem frases ótimas aqui, dentro! da crônica.
um abraço

valeriacristinas disse...

fico pensando, acho que nunca serei uma mulher dessa: as vezes inventada. as vezes esculpida. as vezes remunerada, as vezes perdigueira ( alias que tormento deve ser) as vezes esquecida...estranho

Dalva M. Ferreira disse...

Quisera eu tirar tanta filosofia de uma querela! Geralmente eu arraso e me arraso... Mas, te lendo, aprendo. Feliz 2011!

Emilia Couto disse...

Mais que perfeito a realidade nua e crua! Sangrando!!! Adoro seus Textos Fabricio, sao minhas realidades tbem.

ana disse...

Acho que um poeta sofre muito porque espera mais do que o mundo ou as pessoas podem oferecer. Tudo para ele é pouco, embora seja às vezes até excepcional. É o preço que cobramos por abrir mão de nossa solidão. Também sou poeta. Não uma grande poeta como você, mas sinto uma carência tão grande que é dificil até para mim conviver comigo mesma.

Lari Bohnenberger disse...

Lindo e verdadeiro!

Feliz ano-novo!

Bjs!

Margareth disse...

A falha do orgulhoso é pensar que estar certo, por talvez não reconhecer os erros ou não admitir as desculpas. Mascaras temos todos nos, só que a noturna é a da vaidade, que zela pela beleza, a qual se faz necessário para atrair os bons olhares que provocam até elogios.
Margareth.

Cristiane Girassol disse...

Suspiro... apenas.