Troco os objetos de lugar para que minha mulher fale comigo.
Funciona perfeitamente. Ela que demora a colocar a alma no corpo de manhã acaba conversando mais do que esperava.
– Onde está meu cinto?
– Viu meu celular?
– Cadê meus óculos de sol?
Vou respondendo como um quiz show, um sábio dos esconderijos:
– Na segunda gaveta.
– Está carregando na sala.
– No porta-luvas do carro.
Forjo importâncias. Com o pretexto de salvá-la dos atrasos do trabalho. Ela acorda às 8h30min, tem meia hora para se arrumar e outros 30 minutos para chegar à clínica.
É evidente que ela não perderia tempo se eu deixasse sua bagunça em ordem, acharia mais rápido as urgências, mas crio uma falsa eternidade, uma falsa ordem, para dar a sensação que cuido dela e ainda me preocupo com a limpeza.
O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco.
O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário.
Você conclui que foi uma ideia estúpida alcançar uma cópia da chave. A chave é a verdadeira escova de dente que inicia o casamento. Toda a fechadura é um copo que transborda.
Mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. Afora as toalhas, as calças, os vestidos.
E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.
O arranjo das flores no centro da mesa pede sexo de agradecimento. E ficará chato dizer: “Não toque mais nas minhas coisas”. Engolirá a raiva e permanecerá entontecida em seus próprios domínios, tentando completar diariamente o quebra-cabeça de cinco mil peças.
Uma mulher odeia que a gente mexa em sua bolsa, mas não fez nenhuma restrição em alterar o trajeto dos seus pertences fora do ferrolho. Não colocou nas resoluções do condomínio.
Coitada de Cínthya. Tirou a chave da bolsa, já é minha. Tirou o pente, já é meu. Tirou o filtro solar, já ponho no armário do banheiro.
E ela pensará em mim várias vezes durante o expediente.
– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?
E não devolvo.
Funciona perfeitamente. Ela que demora a colocar a alma no corpo de manhã acaba conversando mais do que esperava.
– Onde está meu cinto?
– Viu meu celular?
– Cadê meus óculos de sol?
Vou respondendo como um quiz show, um sábio dos esconderijos:
– Na segunda gaveta.
– Está carregando na sala.
– No porta-luvas do carro.
Forjo importâncias. Com o pretexto de salvá-la dos atrasos do trabalho. Ela acorda às 8h30min, tem meia hora para se arrumar e outros 30 minutos para chegar à clínica.
É evidente que ela não perderia tempo se eu deixasse sua bagunça em ordem, acharia mais rápido as urgências, mas crio uma falsa eternidade, uma falsa ordem, para dar a sensação que cuido dela e ainda me preocupo com a limpeza.
O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco.
O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário.
Você conclui que foi uma ideia estúpida alcançar uma cópia da chave. A chave é a verdadeira escova de dente que inicia o casamento. Toda a fechadura é um copo que transborda.
Mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. Afora as toalhas, as calças, os vestidos.
E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.
O arranjo das flores no centro da mesa pede sexo de agradecimento. E ficará chato dizer: “Não toque mais nas minhas coisas”. Engolirá a raiva e permanecerá entontecida em seus próprios domínios, tentando completar diariamente o quebra-cabeça de cinco mil peças.
Uma mulher odeia que a gente mexa em sua bolsa, mas não fez nenhuma restrição em alterar o trajeto dos seus pertences fora do ferrolho. Não colocou nas resoluções do condomínio.
Coitada de Cínthya. Tirou a chave da bolsa, já é minha. Tirou o pente, já é meu. Tirou o filtro solar, já ponho no armário do banheiro.
E ela pensará em mim várias vezes durante o expediente.
– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?
E não devolvo.
Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 03/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16569
22 comentários:
Desconfio que meu marido seja assim tbem, ele sempre sabe onde está tudo!Como um mestre dos esconderijos e me entrega sempore com um sorriso amarelo.
Homens! rsrrss...
Adoro seus textos!
tenho um desses!!!
"O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário." Adorei.
"Tirou o pente, já é meu." Mas, como é que você penteia as palavrinhas ali atrás da cabeça? Abs!
E nessas horas me pergunto: Por que raios eu não tenho um marido-faxineiro? Puta merda! Eu seria mega feliz assim. Droga!
Eu não devolvi uma vida, até hoje... =)
"– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?
E não devolvo."
!! Amei. Que declaraçao de amor! Mas aqui em casa é diferente. Meu marido é quem me pergunta onde andam as coisas. Agora eu entendo melhor esse desejo compulsivo de esconder uma a uma as coisas de casa :)
Gosto dos seus textos, do seu humor. E das declaraçoes de amor que faz à sua esposa! Mas nao chego a achar que gosto mais que ela.
http://bernardoececilia.blogspot.com/
Perfeito!!!
Absurdamente perfeito e maravilhoso!!
Porque quando as vidas se entrelaçam pelo amor... elas não pertencem mais a um ou outro... Elas são duas, uma, uma em duas, duas em uma... E não precisam ser devolvidas... Porque se completam assim, juntas e pertencendo a um e não a outro... Em uma confusão que nem o mais organizado dos seres conseguirá arrumar...
Mas é assim que deve ser... confuso e intenso!!
Parabéns... amo seus textos...
Beijos
Danielle Sgorlon
@danisgorlon
http://www.danisgorlon.com
Perfeito, parabéns belo texto!!!!
Descobri o que acontece lá em casa todas as manhãs!
hahahahaha
Felicidades ao casal...
hahahahaha, mas que louco amor !!!
Beijo casal mais lindo !!
Dizem por aí que é mais fácil [des]organizar a vida de quem a gente ama, do que a nossa.
sempre o amor, para o bem e para o mal, não é? depende da dose, direção e percepção externa.Beijo
Em algum momento as vidas se confundem
Ahahaha!Adorei... Ultimamente você tem inspirado "minhas frases do dia"!
Como é bom acordar lendo Carpinejar!
Assistí vc no Programa do Jô...preciso dizer que amei!!!!?? Pronto: sou sua FÃ da terceira idade.
Agora descobrí este cantinho aquí, e venho todas as madrugadas, leio tudo, fico pouco triste quando vc não posta...mas esperei e hoje achei, mais um novo post lindo, adorável e demonstrando ogrande amor que sente pela sua mulher...que coisa linda é o amor!!!!
Parabéns por nos brindar com textos tão inteligentes!!!
Amo tudo!!!
Beijo com carinho, da vó
Mariael
Amei seus textos... Sempre estou a procura do meu celular!
Fico pensando na alegria de Cínthya ao encontrar sua vida nos guardados dele...
Se os deuses resolverem re-inventar os homens, terão em vc um primoroso arquétipo.
Adoro teus textos!
Maravilhoso!!! Adoro seus textos!!!
Oi Fabrício, esse seu quebra cabeça com tantas peças voltadas para atrair dialogo e atenções, na certeza de lembranças diárias da idéias a qualquer um, que ama e quer ter seu amor conservado no cultivo das invenções. Como sempre você é demais. Adorei.
Margareth.
Há "alguém" muito importante pr'a mim, que deve ler sua crônica. E com urgência. Sinceramente,
Dirla.
Cara, eu sempre me divirto por aqui.
Um abraço!
O jeito despreocupado e denso como vc se analisa ao passo que vai colocando as coisas e pessoas (e pessoas como coisas, por vezes) em volta, criando os lugares por onde suas crônicas (se posso chamar assim) vão passando... é tão... bacana.
Duvido muito que ela fosse querer a vida de volta, de todo modo... hahaha (:
B.
Uau! Cara, você é demais! Adorei o texto! Abraço! E boa sorte prá Cínthya!
Postar um comentário