segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

QUEBRA-CABEÇA DE CINCO MIL PEÇAS

Arte de Richard Hamilton


Troco os objetos de lugar para que minha mulher fale comigo.

Funciona perfeitamente. Ela que demora a colocar a alma no corpo de manhã acaba conversando mais do que esperava.

– Onde está meu cinto?

– Viu meu celular?

– Cadê meus óculos de sol?

Vou respondendo como um quiz show, um sábio dos esconderijos:

– Na segunda gaveta.

– Está carregando na sala.

– No porta-luvas do carro.

Forjo importâncias. Com o pretexto de salvá-la dos atrasos do trabalho. Ela acorda às 8h30min, tem meia hora para se arrumar e outros 30 minutos para chegar à clínica.

É evidente que ela não perderia tempo se eu deixasse sua bagunça em ordem, acharia mais rápido as urgências, mas crio uma falsa eternidade, uma falsa ordem, para dar a sensação que cuido dela e ainda me preocupo com a limpeza.

O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco.

O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário.

Você conclui que foi uma ideia estúpida alcançar uma cópia da chave. A chave é a verdadeira escova de dente que inicia o casamento. Toda a fechadura é um copo que transborda.

Mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. Afora as toalhas, as calças, os vestidos.

E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.

O arranjo das flores no centro da mesa pede sexo de agradecimento. E ficará chato dizer: “Não toque mais nas minhas coisas”. Engolirá a raiva e permanecerá entontecida em seus próprios domínios, tentando completar diariamente o quebra-cabeça de cinco mil peças.

Uma mulher odeia que a gente mexa em sua bolsa, mas não fez nenhuma restrição em alterar o trajeto dos seus pertences fora do ferrolho. Não colocou nas resoluções do condomínio.

Coitada de Cínthya. Tirou a chave da bolsa, já é minha. Tirou o pente, já é meu. Tirou o filtro solar, já ponho no armário do banheiro.

E ela pensará em mim várias vezes durante o expediente.

– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?

E não devolvo.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 03/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16569

22 comentários:

Emilia Couto disse...

Desconfio que meu marido seja assim tbem, ele sempre sabe onde está tudo!Como um mestre dos esconderijos e me entrega sempore com um sorriso amarelo.

Homens! rsrrss...
Adoro seus textos!

Marcia Toito disse...

tenho um desses!!!

Anônimo disse...

"O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário." Adorei.

"Tirou o pente, já é meu." Mas, como é que você penteia as palavrinhas ali atrás da cabeça? Abs!

Lety disse...

E nessas horas me pergunto: Por que raios eu não tenho um marido-faxineiro? Puta merda! Eu seria mega feliz assim. Droga!

Leandro Lima disse...

Eu não devolvi uma vida, até hoje... =)

Cecília Sousa disse...

"– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?

E não devolvo."

!! Amei. Que declaraçao de amor! Mas aqui em casa é diferente. Meu marido é quem me pergunta onde andam as coisas. Agora eu entendo melhor esse desejo compulsivo de esconder uma a uma as coisas de casa :)

Gosto dos seus textos, do seu humor. E das declaraçoes de amor que faz à sua esposa! Mas nao chego a achar que gosto mais que ela.

http://bernardoececilia.blogspot.com/

Danielle Sgorlon disse...

Perfeito!!!
Absurdamente perfeito e maravilhoso!!
Porque quando as vidas se entrelaçam pelo amor... elas não pertencem mais a um ou outro... Elas são duas, uma, uma em duas, duas em uma... E não precisam ser devolvidas... Porque se completam assim, juntas e pertencendo a um e não a outro... Em uma confusão que nem o mais organizado dos seres conseguirá arrumar...
Mas é assim que deve ser... confuso e intenso!!

Parabéns... amo seus textos...
Beijos
Danielle Sgorlon
@danisgorlon
http://www.danisgorlon.com

Unknown disse...

Perfeito, parabéns belo texto!!!!

Descobri o que acontece lá em casa todas as manhãs!
hahahahaha

Felicidades ao casal...

Anônimo disse...

hahahahaha, mas que louco amor !!!

Beijo casal mais lindo !!

Tati disse...

Dizem por aí que é mais fácil [des]organizar a vida de quem a gente ama, do que a nossa.

Eliane Ratier disse...

sempre o amor, para o bem e para o mal, não é? depende da dose, direção e percepção externa.Beijo

Poeta da Colina disse...

Em algum momento as vidas se confundem

Aline disse...

Ahahaha!Adorei... Ultimamente você tem inspirado "minhas frases do dia"!
Como é bom acordar lendo Carpinejar!

Maria Eli disse...

Assistí vc no Programa do Jô...preciso dizer que amei!!!!?? Pronto: sou sua FÃ da terceira idade.
Agora descobrí este cantinho aquí, e venho todas as madrugadas, leio tudo, fico pouco triste quando vc não posta...mas esperei e hoje achei, mais um novo post lindo, adorável e demonstrando ogrande amor que sente pela sua mulher...que coisa linda é o amor!!!!
Parabéns por nos brindar com textos tão inteligentes!!!
Amo tudo!!!
Beijo com carinho, da vó
Mariael

Anônimo disse...

Amei seus textos... Sempre estou a procura do meu celular!

Aline /B. disse...

Fico pensando na alegria de Cínthya ao encontrar sua vida nos guardados dele...

Se os deuses resolverem re-inventar os homens, terão em vc um primoroso arquétipo.

Adoro teus textos!

Tania Aires disse...

Maravilhoso!!! Adoro seus textos!!!

Margareth disse...

Oi Fabrício, esse seu quebra cabeça com tantas peças voltadas para atrair dialogo e atenções, na certeza de lembranças diárias da idéias a qualquer um, que ama e quer ter seu amor conservado no cultivo das invenções. Como sempre você é demais. Adorei.
Margareth.

Persona Dirla diss disse...

Há "alguém" muito importante pr'a mim, que deve ler sua crônica. E com urgência. Sinceramente,
Dirla.

Robson Ribeiro disse...

Cara, eu sempre me divirto por aqui.

Um abraço!

Babi. disse...

O jeito despreocupado e denso como vc se analisa ao passo que vai colocando as coisas e pessoas (e pessoas como coisas, por vezes) em volta, criando os lugares por onde suas crônicas (se posso chamar assim) vão passando... é tão... bacana.

Duvido muito que ela fosse querer a vida de volta, de todo modo... hahaha (:
B.

Júnia disse...

Uau! Cara, você é demais! Adorei o texto! Abraço! E boa sorte prá Cínthya!