Igor (E) aponta a altura do Rio Forqueta na enchente de 1941, e o pai, onde foi parar a água em 2010. Foto de Adriana Franciosi
Meu pai desenhou uma régua na parede da cozinha para medir os filhos. Eu queria crescer de noite somente para espiar os centímetros novos sobre os meus cabelos loiros. Vivíamos um alvoroço no café da manhã, formávamos fila indiana na porta. Os quatro, três meninos e uma menina, suspiravam, ansiosos pelo veredicto.
Igor Kich, 17 anos, teve uma medição diferente. Não experimentou o controle de sua altura, mas acompanhou, passo a passo, o crescimento do Rio Forqueta. A régua fica na ponte que faz a divisa com o Rio Fão.
Em dia de chuva, ele e seu pai, Ricardo, fiscalizam uma marca na base da ponte na BR-386, para verificar se o nível ameaça Marques de Souza, cidade de 4 mil habitantes distante 130 quilômetros de Porto Alegre.
Desde que ele é guri, repete o ritual. Aliás, o ritual é o mesmo, desde que seu pai Ricardo era guri, desde que seu avô Marino era guri.
Oitenta anos vistoriando um ponto na ponte para avisar a população dos perigos da cheia. E toda semana, e toda vez que os relâmpagos soarem suas trombetas de Jericó pelos morros do Vale do Taquari.
Feita com uma marreta e talhadeira, a cicatriz na construção é ideia do bisavô de Igor, Herbert Arthur Biehl. Um vinco criado para não colocar os negócios familiares em risco, como o da indústria de laticínios Biehl. Apesar do fim da fábrica na década de 90, o hábito se manteve, e é o único sistema de proteção da cidade, absolutamente caseiro, informal e feito no olho.
O ex-vereador Ricardo e seus dois filhos, Igor e Vinicius, 18 anos, são os vigias voluntários da enchente. Os salva-vidas dos campings, das lavouras e dos rebanhos. Não param o Rio Forqueta, mas diminuem os efeitos da devastação, e evitam mortes. Pegam o carro e vão buzinando pelo interior das vias, gesticulando com panos brancos, sugerindo abandono imediato do lar.
– A fórmula da marca é a seguinte: passou um metro do risco, haverá meio metro de água em nossa rua. Ultrapassou quatro metros, serão dois metros de água na rua. É sempre a metade – explica Ricardo.
Com a transposição do símbolo, eles têm exatamente duas horas para avisar aos moradores. É o tempo de a correnteza percorrer os 17 quilômetros até o centro do município.
– Aprendemos com a intuição. Quando o rio traz cisco, sujeira e lixo, vem devagar. Quando traz galhada verde, trata-se de uma enxurrada poderosa e rápida, que rasga a mata.
A última grande enchente ocorreu em 4 de janeiro de 2010, a pior da história, afundando 60% do perímetro urbano, ultrapassando em estragos a de 1941. A inundação fez com que os moradores detestem qualquer comparação com Veneza. Não há glamour na tragédia. Os campings terminaram aniquilados, 28 residências desapareceram, metade dos animais resistiu em cima dos telhados.
– Quem não acreditou na gente, perdeu tudo. Quem acreditou, não teve tempo de retirar o mais importante – diz Ricardo.
Nem os mortos sobreviveram. No bairro Tamanduá, os dois cemitérios, evangélico e católico, foram varridos pela enxurrada. Lápides apareceram quebradas, mausoléus navegaram para a estrada, e ossadas ressurgiram no meio da plantação de trigo.
– Muita gente enterrou duas vezes um familiar – lamenta.
Em Marques de Souza, o rio é um filho desobediente, não é possível deixá-lo brincando sozinho. De geração a geração, as crianças recebem a responsabilidade de cuidá-lo.
– É uma vida inteira secando fotos – desabafa Adriana Berch, 36 anos, com os olhos visivelmente úmidos.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 29, 16/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16672
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2 comentários:
Super. Você é um dos melhores.
Quem disse que jornalismo nao combina com literatura? Belo texto!
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