terça-feira, 10 de maio de 2011

GELADEIRA DE SOLTEIRO

Arte de Nicolas De Staël

Lar de solteiro não significa que estará desarrumado, com pilha de louça para lavar e parte das lâmpadas queimadas. O que diferencia o apartamento de alguém que vive sozinho do espaço de casais e de agrupamentos familiares são os sachês da geladeira. Centenas de sachês de mostarda e catchup ocupando as fôrmas dos ovos.

É que nem a praga do requeijão: nunca percebemos o início da doença, são tantos potes misturados aos copos, que a cristaleira deveria ser renomeada de estande de frios.

O sachê é a multiplicação da miséria. Não há modo de enriquecer após sua passagem, levará qualquer um para a falência ou às barrinhas de cereais.

Ele não tem a humildade de um visitante. Já chega como um movimento armado, uma passeata, uma calcutá de sósias. Tanto que duvide de sachê desacompanhado, não existe isso, chame o batalhão de operações especiais, trata-se de uma bomba.

Em primeiro lugar, porque a quantidade de cada bisnaga é ridícula; necessária uma dúzia para cobrir dois reles pedaços de pizza. Em segundo, não há como abrir a embalagem, a linha pontilhada é uma ironia. O biquinho fechado incita a truculência de um torturador – dependemos de várias opções para salvar a metade do conteúdo de uma. E não é prático, sempre nos lambuzaremos ou sujaremos a roupa.

Sachê é uma droga que vicia. Rapidamente o usuário se transforma em traficante. Surgem dentro dos pedidos de telentrega e espalham seus tentáculos de alumínio plastificado pela cozinha.

Para evitar a decadência, aconselho a jogar fora o que não foi usado no almoço e na janta. Nunca guarde. Ao preservar um exemplar, terá a infeliz iniciativa de economizar com os pacotinhos. Pensará que não precisa comprar alguns mantimentos, diminuirá a lista do mercado, e partirá para caçar saquinhos de azeite, vinagre e shoyu nos restaurantes.

Acabou a paz. Não vai parar de colher envelopes das cestinhas das mesas. Os amigos irão se envergonhar de sua companhia. Assumirá uma condição compulsiva, de colecionador histérico, com os bolsos forrados e as bolsas transbordando. Não terá mais vida social quando desfalcar o sal do cinema e o açúcar dos cafés, e não poupar sequer o adoçante.

Só o impacto de um casamento poderá salvar o sujeito. Só o amor para regenerar um cleptomaníaco de amostras grátis.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/05/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16696

23 comentários:

Anônimo disse...

Meeeda! hahahaha

Debora

Maya disse...

Ai,sei lá se faz sentido,mas aqui em casa é assim. Tô quase pensando em juntar todos saches e colocar num potinho rsrs. Em mim,dá a depressão de saber "que droga,acho que tô comendo sanduiche demais,pizza demais,deliver demais..." Qual foi a ultima vez que almocei mesmo? Por que eu guardo essas porcarias se na próxima entrega,vem de novo?


Ah,só o amor! O amor sempre pra resolver tudo. Por hora,vou arrumar a geladeira e jogar pelo menos o sache de mostarda fora. Não sei porque está lá,nem de mostarda eu gosto. Sempre sobra.

Crisneive Silveira disse...

Ainda não cheguei ao ponto de cleptomaníaca de amostras grátis, mas a coleção de sachês na geladeira é uma coisa que só aumenta. Já me salvaram nas várias vezes em que a manteiga para o pão havia acabado... rsrs.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Amarelo, vulgo Anthony ravoni disse...

Descreveu totlamente a minha vida de solteiro. Muito bom o texto!

Anônimo disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
DEMAIS
RI MUITO AQUI!SOZINHA LÓGICO!
QUE TRISTE ESSA VIDA DE SOLTEIRA
HAHAHAHAHHAHAHA
Débora Thomé

lídia martins disse...

Meu falecido tinha compulsão por cardápios e não me pergunte o que ele fazia com aquilo. Ele sempre dizia que era para dar de presente à um amigo, mas quando eu acendia o meu celibrim em sua íris, ela se contraía para constatar o que eu já sabia: que era mentira.


Ri de nós, beatas (os) entediados (as), porque o grande amor que tornou seu ainda está à sua espera. Fora esta particularidade que nos separa, os aprendizes de gênios continuam no encalço de tua sombra, mesmo sabendo que talvez nunca venha conhecer nossas biografias.

Não faz mal, não me importo de compartilhar a mesa com o teu fantasma. Agora vamos, sente-se e coma este pedaço de pizza de três dias, que esta obra prima que escrevestes precisa ser comemorada!



Assinado: Pipa, a sua comparsa.

Unknown disse...

Não sei se, quando se alcança a sua projeção na escrita, ainda comove saber o quanto se marca. Dessensibiliza ouvir o eco do que se escreve dentro dos outros?

Em mim, o texto do link foi o quanto retive da tua voz. Obrigada por inspirar.

http://www.palavraemfuga.com/2011/05/carpinejando.html

Edu Tattoo disse...

Hoje, solteiro novamente, aos 50, os saches não mais habitam a frieza da minha geladeira. Ela não mais os acolhe, são nefastos! na minha segunda solteirisse e com uma nova dieta, claro nada normal aos padrões, minha geladeira é dada a abrigar com carinho e propriedade, potinhos de sobrinhas. Claro, cozinho como gordo e como parecido a uma carruira.Tem sobra de tudo. Chimarrão, saladinha, arroz tai, churrasco, etc. Já pensou? Meu churrasco é meio salsichão, que não dispenso por nada e um pedaço de carne mais ou menos do tamanho de um isqueiro. Na fumaça da fome trago o prazer do sabor, viciei-me nisso, porém sobra tudo! Jogar fora nem pensar, pumba! Geladeira! Agora os saches de hotel, bah esses eu sou campeão, assim como os de avião. Verdadeira compulsão. Guardo-os no armario do banheiro como num cofre. Poupança, melhor, VGBL de fragrâncias. Umas destestáveis, coisa de usar em acampamento de pescaria na barranca. Outras fabulosas, uso-as em dias calorosos de verão a beira do Guaíba. Esses sim coleciono.
Abxxx à dupla

KML disse...

Fantástico!

Telmo Silveira disse...

Quando era solteiro, não faltava carreteiro congelado (de meses), sobra de miojo (pode?) e resto de restos!

Anônimo disse...

Hahahaha,sachê é um bom companheiro! Sem falar na lambreca que faz nas mãos ao abrir e o pedaço de plástico que cuspimos ao lado do prato...Tolices!

@prof_lucena disse...

E quando o cabra começa a trazer para casa também aqueles sabonetinhos de Motel, que não tem cheiro de nada. Sacanagem, né? rsrsrs Adorei o Post.

Ramiro Conceição disse...

“Só o impacto de um casamento poderá salvar o sujeito.
“Só o amor para regenerar um cleptomaníaco de amostras grátis.”
Será isso mesmo, meu amado Poeta? Infelizmente, não creio, pois…


A LENDA
by Ramiro Conceição

Diz uma lenda que, certa vez,
Deus e um poeta se falaram:

— E, aí, poeta, algum plano imediato?
— No momento, subir a escada, entrar no quarto,
abrir as janelas, pensar-sentir… E encantá-Lo.

(Diz a lenda que Deus chorou).

Anônimo disse...

Engraçado!!!

rs

olha esse trabalho "In your fridge" http://www.stephaniederouge.com/#/DOCUMENTARY/In Your Fridge/16


tirei daqui:

http://100mililitros.blogspot.com/2011/05/in-your-fridge.html


ass: Pri

Nah disse...

Nossa! Ri muito com o post! Descrição perfeita no quinto parágrafo!!!

Miguel Rude disse...

caramba! eu tenho potes de vidro de saches...tudo separao...catchupm,maionese, shoyo...ate adoçante q nem uso!!!

Mihh' disse...

E se a pessoa amanda também for cleptomaníaca de amostras grátis?
Não só a geladeira, mas a casa inteira viraria um templo de sachês! :O

HUAHAUAHAHUAAHAH'
Adorei!

Mihh' disse...

**pessoa amada >.<'

Carlos A. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos A. disse...

kkkkk...essa mania de guardar sachê na geladeira eu tb tenho,embora já tenha jogado varios de maionese fora.....os de catchup e mostarda sempre fikam...

Natalie Gomes disse...

Os Sachês, infames, sachês.
Toda a sorte de amostras grátis, temperos, cosméticos, perfumes, remédios, e enveredamos pelo mundo dos brindes, bloquinhos, canetas, quando vemos só queremos saber de trocar pontos, programas de fidelidade e a decadência suprema: compras coletivas...

L. disse...

Lendo a ti comecei a rir de mim mesma e percebi, sim, que a minha solteirice faz-me recolher saches de mostarda e ketchup...os quais nunca uso, mas estão lá, guardados para uma possível emergencia que nunca irá chegar!
Costumo a dizer aos meus pais que morando sozinha descubro outros solteiros nos corredores do supermercado: normalmente param nas prateleiras do macarrão instantaneo e compram dúzias!