quarta-feira, 1 de junho de 2011

PASTELÃO

Arte de Cínthya Verri

Eu falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270!

Agora terei que esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da vigilância secreta de minha mulher.

Por enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de ter feito qualquer coisa.

Vem funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa podre; e ela nem estava comigo naquele momento.

Repare que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos eufemismos.

Fui quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço.

Fazia tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua, dos dentes e dos lábios.

O vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os pelos da barba.

Ganhei um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Ainda fui para São Paulo de tarde, o que agravou o mistério do corte.

Parecia marca de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me proteger de crise conjugal.

Ao descer de volta a Porto Alegre, no aeroporto Salgado Filho, Cínthya não esperou que colocasse a mala no bagageiro:

— O que é isso?
— O quê?

Eu me fiz de mal-entendido porque lembrei que não poderia contar a verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema, mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu colesterol, não tinha jeito.

— Como não sabe? Parece uma mordaça…
— Hein?
— Um arranhão de mulher?
— Não, tá brincando, né?

Com objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão que depende de novos detalhes e vai corrompendo o arquivo rígido e contamina a memória desde o nascimento.

A mentira cresce a tal ponto que não existirá forma de recuperar o início. E deixará de fazer amizades para recrutar cúmplices e álibis.

A dificuldade de expor uma vergonha facilmente perdoável, um pecado comum, nos faz amargar a condenação capital de um crime. Os constrangimentos simples, não os grandes, sempre nos conduzem à pena de morte.

— É obra de uma vadia?
— Não, não…
— É herpes?

Quando ela mencionou herpes, percebi que o colesterol não é nada perto do ciúme, então gritei:

— Eu me queimei com um pastel. Foi um pastel, foi um pastel!



Crônica publicada no site Vida Breve

16 comentários:

Anônimo disse...

Ah! Como eu amo textos com grandes reflexões camufladas entre as palavras rotineiras.
Adorei!

Anônimo disse...

Sabendo de sua vinda a Costa Doce, dei um look em seu blog.Putzgrila,quero ler mais. Parabéns pela veia criativa e pelo show c/ a galera teen e aborrecente. As professoras da Biblioteca pública vibraram. Mas afinal, duas capas de womans em back side,perdão sou do surf. Vc q aprovou? Mas q agenda lotada hem! Já sabes q fazer em Brasilia, botar a boca no trombone, ou curtir o sucesso junto c/a Duncan?
Abçs e saúde.
Castro Pereira, conterrâneo.

Maya Quaresma disse...

Incrível texto. rs
Como uma mentira, que era para ajudar, acaba prejudicando mais do que imaginamos.

www.sobaluzdalua.blogspot.com

Anônimo disse...

ahahahah Não posso deixar de rir... Pela verdade quase ácida em relação à "mentira", e também em relação ao pastelão do "ciúmes"... Confesso: só não mando pro meu namorado pq ele vai me enxergar no texto e usá-lo contra mim! risos
Parabéns, anyway!

Luciana Martinez disse...

hahaha... achei maravilhoso o interrogatório da médica-amor e o final dele, com sua resposta: Foi um pastel!...rsrsrs

Silvinha disse...

Meu colesterol está 268 e eu não consigo deixar de comer coisas gostosas!!! Uma unha por um pastelão bem grandão!!!

Laisa Minelle disse...

Nunca pensei ser possível me divertir com Hipercolesterolemia.
Rs...

Assídua aqui, no twitter e no facebook.

Sensacional. :)

Unknown disse...

Eu, que também ando com colesterol acima dos 260, me vi aqui! E sou louca, louquinha por um pastel desses... Solidarizo-me!

Anônimo disse...

Olá Carpinejar... Me chamo Rodrigo, sou repórter no Jornal O Informativo do Vale de Lajeado. Você estará aqui na semana que vem, na Univates. Quero fazer uma entrevista contigo para o Caderno Pelo Campus, que circula sempre às segundas no jornal e na universidade. Preciso urgente contatá-lo. E-mail: rodrigon@informativo.com.br ou 51 - 3726-6700 ou 51-9805-0194. Abraço

Anônimo disse...

Grande Carpinejar...Sou Fabiane, da cidade de Arroio do Meio. Li hoje pela manhã no jornal O Informativo que tu vens à Univates. Com certeza estarei lá para prestigiá-lo.

Abraços.

Anônimo disse...

Esse blog é machista, parece coisa de homem com pau pequeno. Lógico, quem precisa expor mulher pelada no pano de fundo do blog para provar que é homem é porque tem o pau pequeno.... obvious

Humor Socratico disse...

O grito do pastel querendo sair da consciência!

sfelipejj disse...

Galera, Show em BRASÌLIA

Park Shopping às 19:00

Blog:http://felipecyntrao.blogspot.com/

Vô tá lá... Tem que tá!

Ramiro Conceição disse...

Cínthya,
estou a desconfiar que o seu poeta anda a querer dar uns "pulinhos" pra fora da cerca. Só há um eficaz tratamento lírico: chicote no lombo do pasteleiro... Pode acreditar: o bicho adora uma bem dada chicotada ciumenta...

Bem, ao casal deixo um poético perfume...


JARDIM DA VIDA
by Ramiro Conceição


O Belo
é fruto da árvore da Beleza
que se planta, que se cuida,
no Jardim da Vida…
Não é ilha, não se compra,
não se vende: se partilha!

FERNANDO NASCIMENTO disse...

Sensacional a evolução do texto.
Ciúme, mulher e colesterol.

Coisas que todo mundo acha que controla, mas um dia acaba nos matando!!!

Cris disse...

Deu para rir consideravelmente! hehe.