Arte de Salvador Dali
Homem já passa a identificar suas próprias cuecas. O que é um tremendo avanço tecnológico. Mas toda evolução tem seus efeitos colaterais. Maurício que o diga.
Ele estranhou uma cueca preta em sua gaveta. Quase que a vestiu sem pensar, na saída do banho, naquela pressa que aceita o improvável.
No entanto, algo incomodou no
exemplar. Ou a marca de caveira ou o tamanho folgado criou a incerteza de seu domínio. Definitivamente não era dele. Nunca fora dele.
Por pouco não cheirou para tirar a
cisma. Evitou a fungada para reduzir os danos da humilhação.
O sangue subiu com o raciocínio. Ser corno não é uma decisão fácil, exige madureza, sabedoria e, acima de tudo, provas.
Antes de definir autoria, eliminava hipóteses:
1) Não tinha filhos.
2) Não tinha irmãos.
3) Sua mulher também não tinha irmãos.
4) Seu pai morreu.
5) O pai de sua mulher morava longe.
6) Não jogava mais futebol com amigos.
Desprovido de figuras masculinas diretas na convivência, apanhou a peça, agora com um certo nojo, segurando a etiqueta com a ponta dos dedos, e seguiu para discutir com
a esposa. Não restava dúvida de que ela deveria conhecer a origem do enxerto.
Sua boca borbulhava de ódio:
– Safada, será que ela me trai, e ainda na minha cama, e ainda lava a cueca do cara e bota dobrada nas minhas coisas?
Estava convicto de que a vizinhança inteira debochava de sua virilidade, de que o porteiro ria de sua tolice romântica.
Ao encontrar Lúcia tomando café na cozinha, ele ergueu a bandeira negra a fim de guerra.
– De quem é essa nojeira?
– Sua?
– Não!
– Não é o que estou pensando...Não vai dizer que anda trazendo cueca de outro homem para casa, Maurício!
– O quê?
– Não tem cabimento encher o armário com roupa de amigo. Intimidade não se empresta, fica chato. É como escova de dente.
– Amor, não peguei nada emprestado de nenhum amigo.
– Então, o caso é mais grave, o que anda fazendo, amor? Não me diz que vem me traindo? E com rapazes?
– Tá maluca, Lúcia. Você me conhece.
– Não sei não, é suspeito, me explica o que faz uma cueca de um estranho em sua gaveta?
– Sei lá, também quero saber, iria mesmo perguntar para você.
– Para mim? Eu não uso cueca. Que vergonha! Ai se minha mãe sabe...
– Eu não fiz nada, juro, a cueca apareceu de repente em minhas roupas.
– Deixa eu ver? Ai que horror, tem cheiro de usada. Ai, não acredito, tem pentelhos.
Ela soluçou o início de choro, bateu a porta de casa e saiu furiosa.
Maurício não descobriu de quem era a cueca. Isso não merecia mais sua preocupação. Necessitava achar um jeito de acalmar a esposa.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 15/05/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1770
9 comentários:
Ser corno é uma arte. Felizes são os bons anfitriões.
haha!!
a incrível dominação feminina! xD~
Beijos,
Samantha Monteiro
Word In My Bag
Uma das melhores postagens do blog de Fabrício Carpinejar...
Eis que surgi a eterna dúvida: de quem era a cueca? Bem já não importa mais não é mesmo, ambos só se preocupam agora com a reconciliação. Adorei, criativo, curioso.
Você me surpreendeu com a visita, e me fez perceber o quão precipitado fui, mantenho minha posição, mas se você tiver um tempinho, gostaria de conversar mais, não só sobre isso, mas sobre toda a ampla rede cultural do nosso país. Não sou artista, sou um amador, mas também sou um leitor e um sensitivo a cultura em geral, um cidadão que não vira a cara pra não ver os detalhes. Obrigado pela visita, seja sempre bem vindo, afinal a casa, a inspiração e alguns dos pensamentos,também vieram de você.
Que contorno legal! haha, amei, na verdade, amo todos seus textos, beijos.
Um jeito de acalmar a esposa?
Um buquê de rubras rosas...
E não se fala mais em cueca. Por um tempo.
É como eu digo "um homem só se torna um homem quando começa a comprar suas próprias cuecas"
Gostei da crônica...
Diego Debom www.facebook.com/diegodebom
kkkkkkkkkkkkkkk' eurilitros!
muito bom ;DD'
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