Arte de Eduardo Nasi
Não leio jornal amassado.
Sofro quando alguém pega o jornal antes de mim. Faço questão de resgatá-lo do capacho para não sofrer ameaças.
Separo delicadamente os cadernos, pego minha xícara de zebra do café e viro as folhas com cuidado cervical.
É um dos meus melhores períodos da manhã. Estou ajustado ao tempo de meu pai como o pássaro no fio telefônico. Nada me separa do passado. Todo Transtorno Obsessivo-Compulsivo é uma vontade de preservar um amor antigo.
Eu briguei muito na minha infância com a figura paterna. Foram três anos de apelações e competições silenciosas, dos oito aos 11 anos.
Meu pai Carlos Nejar não tolerava ser o segundo na leitura do jornal. Só que ele transformava o papel em lixo em rápidas pinceladas. Desleixado, dobrava as páginas, derrubava manteiga, rasgava as manchetes interessantes, sublinhava trechos inquietantes, mudava a ordem das páginas, a ponto do jornal ao final aparentar a maquete de um castelo.
De suas mãos, o jornal vinha como um bolo de noiva — faltava somente a bandeja. A editoria de esporte namorava a de política, a de cultura se esfregava com a economia. Impossível uma criança ajeitar a numeração, pedia o trabalho profissional de uma bibliotecária.
Herdar a leitura do pai era uma calamidade. Isso quando ele não levava ao banheiro, aumentando ainda mais nosso índice de rejeição. Eu e meus irmãos tínhamos motivos de sobra para sermos analfabetos e desinformados do mundo.
Sensível com a ilegibilidade do papel, a mãe passava ferro. O esforço não compensava muito, a gramatura ficava ressecada, como livro de sebo. Com certeza, o jornal que embrulhava os ovos na cozinha estava mais conservado do que aquela edição do dia.
Por ódio à rotina, encampei a condição de desafiador da hierarquia familiar. A ovelha negra do rebanho do Nejar. Comecei a acordar mais cedo do que o pai.
O entregador deixava o jornal pelas 5h30, o pai levantava às 6h, eu me antecipei dez minutos.
Durante um mês, li o jornal primeiro. E ainda fazia a questão de oferecer algum suplemento ao pai para diminuir sua ansiedade.
Mas ele se antecipou aos meus dez minutos e recuperou sua realeza no mês seguinte.
Mas eu me antecipei aos seus dez minutos e controlei a pole durante quarenta dias.
Até que, sem percebermos, nos encontramos 5h20 da madrugada. Eu e o pai de pijama, juntos na varanda da casa, sentados na escada. Ambos se adiantaram demais à missão.
Quietos, nos emocionamos com o barulho do alvorecer nas calhas. Os cachorros cantavam no lugar dos galos, o vento serrava as fechaduras dos portões por novas chaves.
E acho que seguramos nossas unhas por alguns minutos nos frisos das lajes.
Pena que o entregador do jornal chegou e estragou nosso momento.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
9 comentários:
Sensível, nostálgico com uma pitada de riso.
Sempre tive fascínio por ler jornal mas a tinta me fazia espirrar a manhã inteira. Quando via em filmes uma bandeja sendo entregue na cama com café da manhã E jornal pensava que os lençóis iriam ficar impressos também, e foi então que descobri a mágica dos mordomos!!! Passar o jornal a ferro é um de seus deveres para que a tinta se fixe, evitando alergias e sujeira, fora que eu adoro o som "crocante" das folhas ao serem manuseadas.Sem mordomo eu mesma passava o meu. Sábia mamãe Carpi!
Esse texto é maravilhoso! Obrigada sempre!
Ah , meu Deus . Minha respiração ficou em suspenso até o wentregador chegar . Crônica linda . Tudo que você escreve é muito lindo ! Demais !
Os cachorros cantavam no lugar dos galos...Estou viajando pela Toscana e esse é o verso que eu buscava para uma poesia que eu estava escrevendo. Você ganharia o premio Nobel de Literatura se viesse à Toscana e escrevesse um livro aqui. Seria o encontro de um gênio com o lugar mais inspirador do mundo.
Abraços.
Fabricio querido,
Quando li sua crônica hoje pela manhã, a nostalgia tomou conta de mim. Lembrei-me do tio e dos anos que morei na casa da vó Mafalda e do Vô Sady.De repente, comecei a sentir o cheiro de terra molhada, o cheiro daqueles canários do vô, do café recém-passado da vó, o gosto das balas 7belo que comprávamos na venda do Seu Costa..ainda vejo o vô fechando com chaves a porta do porão onde guardava seus aviamentos preciosíssimos.
Lembro me que no início dos anos 80,meus pais se separaram pela primeira vez e nossos avós nos acolheram. Quando chegamos, seu pai já morava lá. Ele ficava em um dos quartos de cima da casa, eu e meu irmão tínhamos que escalar aquela escada amarela de madeira para chegarmos ao mais misterioso aposento da casa, o quarto do seu pai. Lá, havia jornal por todos os lados, velhos e novos, as paredes eram de cor azul-calcinha e havia uma mesa com uma intrigante máquina de datilografia. Ela estava sempre com um papel colocado e nele sempre havia alguma coisa datilografada, não conseguia entender o conteúdo, pois, na altura dos meus 5 anos ainda não era alfabetizada. O Toni, meu irmão, fazia a festa!!!Digitava até a bendita folha de papel acabar e as letrinhas ficarem marcadas no rolo da máquina. Quando o tio chegava...bah! Ficava muuuuuiiiito bravo, bravíssimo, e a gente, lógico, negava a autoria da arte até o fim...Lindo seu texto, me trouxe recordãções maravilhosas! Super beijo da prima e fã, Kika.
www. facebook.com/ingridpisani.
Muito bacana o texto.
Me vi nesta crônica, tenho horror que peguem o jornal antes de mim...ao ponto de assinar um outro jornal para minha mãe...pra eu ler o meu primeiro. Mais uma vez parabéns. Beijocas.
Sua infância foi feliz ^^
parabens pelo belissimo blog, acompanho o mesmo desde 2010, recomendo a muitas pessoas. Parabens
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