Arte de Eduardo Nasi
Meus cachorros da infância somente comiam polenta.
Não havia o hábito da alimentação especial, dos biscoitos coloridos e nutritivos, do acervo gastronômico das pet shops.
Gastar com cão só se ele estava à beira da morte ou coberto de sarna.
Cão não entrava no orçamento, na lista do rancho. Dormia no pátio, solto, e tomava banho mensalmente, à força, no tanque da lavanderia. Assim que escapava das garras da toalha, ele se esfregava novamente na terra e se reintegrava ao seu mundo de lobo.
Cão era cão. No inverno, recebia restos de cobertores e panos para se defender do frio. No verão, aproveitava o pelego secando ao sol.
Cão era cão, ele se virava, controlava o movimento no portão, tinha que latir e proteger a residência (hoje ele é o protegido da casa, o dono late em seu lugar).
Nos anos 80, minha mãe preparava a gororoba amarela durante a tarde de quarta-feira. Um panelaço de albergue, de rifa escolar. Sua colher de pau não descansava um minuto. Naquela hora, não atendia ninguém, desprezava telefone, campainha, Jesus, pedido de divórcio. A polenta não podia parar, senão endurecia.
O sofá cheirava a polenta. Os lençóis estendidos no varal cheiravam a polenta. Os vizinhos cheiravam a polenta.
Minha infância foi uma espécie de puxadinho de cantina.
Infelizes eram os dois cockers confinados a um mesmo cardápio, confinados a se embuchar eternamente do prato italiano.
A mãe amava a ansiedade — o ansioso finge que é prevenido. Se possível, antecipava o ano, a década, a vida inteira. Buscava se livrar daquela tarefa, resolver o mês canino de uma vez. Congelava a polenta e ia dando um pouco por dia. A polenta caía inteira, quadrada do pote congelado. Os cachorros não festejavam o almoço e a janta, sequer mexiam o rabo. Aproximavam-se da refeição com resignação. Deveriam estar enfarados do odor, do sabor e da falta de originalidade.
Meus cães sonhavam com a Turquia.
Com muito empenho, eu e os irmãos convencemos a mãe a acabar com a tortura que lotava o congelador, maltratava o estômago dos animais e enjoava a tripulação familiar. Reunimos nossas economias, quebramos os porquinhos e rateamos um saco gigante de ração.
Comemoramos a mudança da mentalidade com fotografia festiva: os bichanos no colo, os pratinhos de ração decorados na mesa e os nossos risos de polenta frita.
O pai surgiu depois do alvoroço elogiando a comidinha.
— Alguém está de aniversário? — gritou para a gente conversando na cozinha.
Viríamos descobrir que ele devorou toda a primeira ração como se fosse um novo tipo de salgadinho.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
10 comentários:
Excelente! Como sempre.
Tenho primos que quando pequenos devoravam a ração dos gatos.
Beijo
O interessante das suas crônicas é que, entre as linhas que compõe as histórias, sempre há um comentário ou outro, que mostra a sua forma de pensar, Fabrício! Todos os seus comentários nos fazem refletir. Como sempre, bom até o texto!
Olá, muuuuito bom te ler!! Show, sua crônica. Voltei ao meu tempo de infância,quando chegava à casa da minha vó materna e perguntava:
"vó tem aquela comida do Tejo(nome de batismo do cão(animal):) da minha vó). Que delícia o angu com aqueles miúdos todos temperadinhos... até com amor:), tamanho o capricho em que ela preparava a comida dele. Tejo era um lord vira-lata. Não iria, jamais, virar esses sacos de comida plastificada de hoje. E era muuuuito saudável.Como é te ler. :)
Um beijo, Fabricio.
Gostei muito. Senti-me um meninote novamente d pés descaços no quintal. Uma certa nostalgia dos tempos d criança, quando se podia brincar d verdade.
Adorei esse texto.:)
Ri muito...
Inveja do cachorro eu não tenho, mas do escritor...
Tenho 33 anos e também me criei com minha mãe fazendo polenta para nossos cachorros. Diferentemente dos teus, lá em casa eles não gostaram da novidade da ração, quando meu pai trouxe um saco enorme pra casa. Cheiraram e viraram o nariz, olhando pra minha mãe, como que pedindo "comida de verdade". Lá em casa sempre se reaproveitou os alimentos. Os cachorros comiam de tudo, até alface! Nunca foram obesos, roíam seu ossinho depois do almoço, bem tranquilos sob as árvores do quintal. Também viviam soltos, tomavam banho no tanque (o que nós crianças nos divertíamos, pois molhava todo mundo que estava perto). A vida era mais feliz, os cachorros eram mais felizes... Não eram parte da família, eram nossos melhores amigos!
parabens pelo belissimo blog, acompanho o mesmo desde 2010, recomendo a muitas pessoas. Parabens
Postar um comentário