terça-feira, 6 de novembro de 2012

O QUE SEPAROU A FAMÍLIA BRASILEIRA

Arte de Tom Wesselmann

Eu sei o que desuniu a família brasileira.
 
O momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo.
 
Quando ela se desinteressou por completo da residência. Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.
 
Quando começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da tarde.
 
Quando as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.
 
Quando a vassoura sumiu de trás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.
 
Quando ter uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.
 
Quando a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da porta.
 
Quando a mãe adiou o jardim. Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.
 
Eu sei eu sei eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de gás.
 
Aquele ato mudou a mentalidade da classe média.
 
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava uma preocupação com o olhar das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da rotina. Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e quinas.
 
Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da cozinha.  Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.
 
Ele precisava estar agasalhado. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem.
 
Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.
 
Minha mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para penduricalhos.
 
É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.
 
Eu achava que o botijão fosse uma irmã.
 
Meu irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.
 
– Mas é floreado! – eu dizia. – Não existe poncho floreado.
 
Vestir o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.
 
O quanto tínhamos tempo livre para amar.
 
Tempo livre para amar a família.
 
Tempo livre.
 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 06/11/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17245

19 comentários:

Deby Lua disse...

Na minha opinião o que separou a família brasileira é a falta de visão e entendimento sobre o futuro de uma estrutura familiar. As pessoas ainda acham que pra serem chamadas de família, precisam se ajustar ao convencionalismo das regras sociais. Ainda tem o preconceito gritante em relação a novas formações familiares. Tem medo do diferente, de fugir do convencional.
Porque uma família não pode ser chamada de família com uma mãe prostituta e um pai gay?
Os conceitos e LAR e FAMÍLIA precisam ser revistos com urgência.

garpereira disse...

Relaxante e verdadeiro, muito bom o texto!

Laisa Minelle disse...

É o 'fim dos tempos' mesmo.

Elias disse...

A capa do botijão de gás só perde para as galinhas de crochê feitas para proteger bicos de bules e chaleiras. Coisas de mãe.

Elias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Liana disse...

Muito bom!!!

Unknown disse...

Um texto extremamente bem escrito, envolvente, verdadeiro em suas peculiaridades, ai que inveja boa de tamanho dom de se expressar. Parabéns.

Ps.: Um pena ser verdade a realidade deste texto!

Anônimo disse...

Nossa... Quase chorei!

Sempre falo muito disso entre os meus amigos, e muitas vezes me sinto "a velha, a careta, a romântica" da turma. Porque a grande maioria das pessoas não dão mais bola pra isso. Tudo é descartável, não temos tempo para ficarmos cuidando tanto assim de algo, e se esttragar ou ficar velho, é simples, é só comprar outro, mais novo e mais moderno. O problema é que esse "conceito" (se é que se pode chamar isso de conceito) esteja se aplicando às pessoas também...

Pena, pena mesmo que tudo esteja ficando assim hoje em dia, descartável.

Anônimo disse...

Às vezes se prioriza a internet, a tecnologia, os donos que fazem a cabeça dos jovens ao invés de se prorizar e de se ter aquele laço de conversas ao redor da mesa, com a família, bate-papo na sala de estar. Uma saída, rever o LAR e FAMÍLIA, enfim, estamos em uma nova era, uma nova realidade, conceitos de família fogem muito do convencional, do tradicional, e hoje jovens passam uma boa parte do tempo frente a aparelhos tecnológicos, não há mais tempo para conversas, para descobrir mais sobre a vida alheia, no entrosamento, nos detalhes, coisas que a diversão e o mundo moderno consomem muito tempo e tem sido deixados para trás. Valores tem sido mudados, cultura vem mudando.

Anônimo disse...

Às vezes se prioriza a internet, a tecnologia, os donos que fazem a cabeça dos jovens ao invés de se priorizar e de se ter aquele laço de conversas ao redor da mesa, com a família, bate-papo na sala de estar. Uma saída, rever LAR e FAMÍLIA, enfim, estamos em uma nova era, uma nova realidade, conceitos de família fogem muito do convencional, do tradicional, e hoje jovens passam uma boa parte do tempo frente a aparelhos tecnológicos, não há mais tempo para conversas, para descobrir mais sobre a vida alheia, no entrosamento, nos detalhes, coisas que a diversão e o mundo moderno consomem muito tempo e tem sido deixados para trás. Valores tem sido mudados, cultura vem mudando.

dona disse...

quando conseguiu-se ter mais de um tv na casa, ninguém precisa mais sentar junto no mesmo sofá e ver o mesmo programa.

Roseli Vaz disse...

A Máquina me trouxe até aqui.
Fico impressionada em como você é original, criativo e, ainda assim, preserva aqueles conceitos do século passado sem ser maçante, ou o dono da verdade.
Gosto de te ler, com essa sua criatividade no meio das palavras? O texto parece fervilhar!
Que sua coragem de ser feliz te recompense com a felicidade!
Este texto está especial!

Adriana disse...

Fabrício, terminei de ler teu texto com lágrimas nos olhos. Concordo e parabenizo-te pela beleza do texto, pela poesia e simplicidade com que traduziste essa sensação de "falta de tempo" que temos hoje. Obrigada!

Cláudia Leister disse...

Carpinejar, que delícia ler seu texto! Ri e sorri demais!

André Antunes disse...

Lindo texto, como muitos dos seus, este eu guardarei num canto especial da memória, pois, me fez chorar e rir no final. Genial! Parabéns.

Fernanda Ortiz disse...

Picamos o tempo em pedacinhos que cremos poderem facilitar nosso dia a dia e permitir que "todos os compromissos sejam cumpridos". Nessa corrida, esquecemos do significado da qualidade do tempo em vida, com amor de sobra, ao lado de família e outros queridos nossos. Somos capazes de abandonar e descartar o que consideramos supérfluo, tanto em matéria quanto espírito, e deixamos de nutrir sentimentos que nos tornam humanos e completos. Seu texto recupera tantas tendências desse mundo em que o centro é o capital e racionalidade técnica e, ao mesmo tempo, toca profundamente nossos corações. Incrível, como sempre. Parabéns. De uma de tantas fãs suas...

ganhar dinheiro disse...

parabens pelo belissimo blog, acompanho o mesmo desde 2010, recomendo a muitas pessoas. Parabens

Juliana Belletti disse...

Sim.Verdadeiro e com o belíssimo dom de me fazer lembrar até do cheiro da cozinha da minha infância e da cor da roupa do botijão...hoje,moro numa cidade que que as pessoas são assim,roupa para bombona d´água,botijão,bem vindo na porta e na guirlanda.