Arte de Andre Masson
Tenho um péssimo hábito de não anotar o sobrenome dos meus contatos do celular. Digito rapidamente o primeiro nome e deu. Livro-me da tarefa.
Assim, quando vou telefonar para meu amigo Everton, enfrento a loteria de cinco Everton na minha lista e não sei qual é o Everton verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas o Everton mais próximo está ladeado de xarás eventuais e efêmeros do mundo dos negócios.
Para falar com Everton, acumulo gafes. Como não sei sequer os primeiros dígitos de seu número, sou obrigado a perder uma manhã inteira confirmando seu telefone. É ridículo, ligo para vários intermediários para ter a certeza de um destino.
Enfrento enrascada ainda maior diante de nomes tradicionais como Ana, Maria, Pedro e Zé. Daí a roleta russa se converte em guerra ucraniana. São 15 opções de cada um para criar constrangimento, gastar lábia e pedir desculpa.
Minha preguiça sempre me coloca em situações embaraçosas. Esses dias, recebi um SMS de minha amiga Natalia, avisando que não iria para aula porque sua mãe faleceu. Aquilo me calou fundo. Encheu de lágrimas os dois copos de requeijão de meus olhos. Não questionei o contexto “Aula? Que aula?”, afinal não frequentava mais nenhum curso com ela.
Respondi apenas meus pêsames e perguntei onde seria o enterro e qual o horário.
Tinha sido colega de Natália no Ensino Médio. Foi minha confidente e conselheira inseparável. Recordava sua mãe nos servindo sanduíche de mortadela e suco de laranja quando estudávamos no quarto para as provas finais. Conservei essa terna imagem para ter o que desaguar no sofrimento.
Ao chegar no velório no São Miguel e Almas, não localizei a cabeleira loira de Natália.
O silêncio do lugar acentuava os gemidos e miados dos parentes. Cadeiras em L asseguravam ordem e fila na demonstração da dor.
Esperei sentado um pouco para ver se esbarrava em alguma lembrança. Não reconheci ninguém.
Decidi cumprimentar o homem perto do caixão. Raciocinei que era o viúvo e pai de Natália. Eu me aproximei e abracei longamente o sujeito. Chorei copiosamente em seus ombros. Ele retribuiu chorando mais alto. Dei dois socos em suas costas. Ele revidou esmagando meus braços. Eu soltei uma frase consoladora tipo “A vida é terrível!”, ele concordou soluçando.
Sozinho, ao lado da falecida, observei o vidro buscando entender se a morte tinha inchado seu rosto ou ela havia envelhecido em pouquíssimo tempo.
Depois de me desidratar no cemitério, telefonei para Natália e lamentei que não a encontrei na despedida de sua mãe.
- Minha mãe, Fabrício? Isola! Está vivíssima da silva.
Acho que chorei pelo morto errado. Fica como crédito para o próximo enterro.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 15/6/2014 Edição N° 17829
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