terça-feira, 29 de agosto de 2017

BEM-ME-QUER, MAL-ME-QUER

Foto: Gilberto Perin

Quantos e-mails escrevi e não enviei?
Quantas mensagens pensei, suspirei, coloquei a mão direita na consciência e a mão esquerda no coração e deletei?
Quantas cartas feitas longamente, dolorosamente e, ao cabo, desisti da palavra?
Quantas declarações, juras, perdões, explicações e retratações nunca encontraram o seu destino e a paz do outro lado?
Quantas vezes escrevi e desisti, apontei o lápis da pupila, gastei os punhos e recuei, vi que as frases não fariam efeito, o que foi dito pessoalmente não vingaria na tinta e na tela?
Quantas madrugadas passei em claro escolhendo os vocábulos, e não fui melhor que o silêncio?
Quantos momentos a esperança não falou mais alto e declinei de acrescentar qualquer sopro de gentileza em uma relação?
Quantos tormentos desapareceram com as fotografias verbais e a minha esperança?
Quantos escritos - intuo que inúmeros, dezenas - que joguei fora por me enxergar inteiramente desanimado para qualquer tentativa?
Quantos WhatsApps estive digitando sem fim e não apareceu o que desejo dizer para o contato?
Escrever e apagar, ensaiar e cancelar, bailar com o corpo encostado no verbo e esconder o rosto no travesseiro.
Ainda questiono se não ter mandado nada em horas cruciais da minha existência foi coragem ou covardia - às vezes covardia é falar de menos e não expor o que se está passando, às vezes covardia é falar demais e machucar sob o pretexto da sinceridade.
Guardo sérias dúvidas se responder não seria uma vaidade do sofrimento, pois não tem graça sofrer sozinho e cultivamos uma esquisita mania de arrumar culpados para aquilo que não deu certo.
Eu também raciocino que não adianta escrever para ofender ou por se sentir ofendido, porque o destinatário somente lerá as primeiras linhas e deduzirá o resto.
Quantos novos eus surgiriam se teclasse enviar, se insistisse na fúria e na paixão, se fosse menos cerebral e mais sanguíneo?
Quantas confissões coloquei no papel e afastei repentinamente dos olhos alheios?
Quantas mentiras desfrutei da chance de desmanchar e me retrai na culpa e não despachei adiante?
Quantos textos desesperados que jamais sairão do bloco de notas, quantos arquivos moribundos, salvos com nomes esdrúxulos, estão abandonados na pasta Meus Documentos?
Quantos desentendimentos e ódios poderia desatar se confiasse no destino, mas quantos igualmente escândalos e barracos teria provocado com a cabeça quente?
Mal-me-quer, bem-me-quer, nunca preveremos qual será o preconceito que emergirá das verdades. As opiniões mudam conforme os pecados.
O que acredito é que para algum lugar vão as cartas que redigimos e não mandamos. Elas devem ficar registradas em um ponto remoto de nossa memória, de nossa carne, de nossa carnação, em algum lugar dos desacontecimentos acontecidos.
Alguém lê. Mesmo que seja Deus. Mesmo que seja a minha versão avançada no inconsciente.
Só não enviei por um motivo, uma crença na vida: ninguém tem a obrigação de me amar. E pressionar e convencer são ações que apagam todo o charme espontâneo do amor.

Publicado em O Globo em 15/06/17

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