segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O ACENO DESAJEITADO

Não queria mentir para você, meu amigo. Eu me apanho em flagrante, como se o estivesse traindo.
Nunca mentimos um para o outro. Nunca faltamos com a sinceridade, desde quando chegamos juntos a Porto Alegre do interior do Estado para estudar, há 40 anos.
São décadas de autenticidade na cara, um barbante dos meus olhos aos seus, um fio luminoso e claro de nossa lealdade. Nossas pupilas nem mais se dilatam com o susto das palavras.
Quando as verdades eram incômodas, brincávamos, encontrávamos um jeito de rir de nossas mazelas. E sempre dava certo, ajeitávamos a angústia criando piadas internas e dialetos.
Mas agora não, rir dói, rir tira o seu ar, rir provoca uma tosse infinita de jogar para fora o que resta de seu ânimo, temos que enfrentar a dureza da situação com a seriedade.
Somos péssimos falando sério. Somos crianças quando viramos adultos. A vontade é chamar os nossos responsáveis para nos buscar na sala do SOE.
E não desejava mentir, mentir que seu estado de saúde não é grave, que hoje ou amanhã ou depois de amanhã não serão seus últimos dias. Alguns dirão que é questão de meses, mas o fim flerta com o tamanho de minhas frases. Nunca prevejo se devo agradecer ou apenas confortar, se devo dizer o quanto é fundamental para mim ou arejar a sala de augúrios com relatos banais de minha rotina, se devo comentar o futebol do fim de semana ou ser exato e claro na oração de adeus. Ai que horror quando cumprimentar e se despedir vão disputando os mesmos gestos.
Ainda muito para falar, e às vezes eu suspiro o testamento em sua presença. Ainda muito para viver, e sou egoísta porque me fixo no meu pesar e venho disfarçando pessimamente a pobreza de espírito com a família.
Qualquer ruído do seu corpo produz a minha atenção extrema. A morte é um assaltante na calada da noite roubando o meu melhor amigo de mim.
Chamo o seu número no celular e, quando você não atende, já penso que aconteceu. Todo instante não para de acontecer para mim. Sou esmagado por pressentimentos. Pego a sua mão ossuda e luto para espantar pensamentos sombrios, imaginando que aquilo pode ser o prenúncio da argola de seu caixão. É uma grande bobagem e uma infeliz realidade. E, ao mesmo tempo, preciso manter a expressão tranquila, para não entregar as minhas certezas médicas a respeito de sua debilidade.
Meu rosto confiante e otimista é também uma farsa, estou desmontado pelas lágrimas. É a nossa maquiagem masculina, desmonto sozinho em casa e depois me monto de novo para poder vê-lo no hospital. Aguento algumas horas e novamente sou um quebra-cabeça carecendo de peças para completar o seu feitio humano.
Ajudo a amparar o seu corpo da cama para o sofá e a sua magreza de câncer nunca foi tão pesada. A densidade nunca está no corpo, mas naquilo que sentimos.
Você foi a primeiro entre nós a envelhecer, era meu irmão mais novo e tornou-se, de repente, meu pai de idade avançada.
Não pretendia estar mentindo, meu fiel amigo. Mas sempre mentiremos na doença, sempre mentiremos na esperança, sempre mentiremos quando alguém que amamos vai partindo e o que fica é uma lacuna insubstituível, irreparável, inconsolável.

Uma mão é aceno, eu persisto a usar as duas para contê-lo e abraçá-lo.

Publicado em Jornal Zero Hora em 24/02/17

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