quarta-feira, 30 de agosto de 2017

PESSOAS RETRÔ

Pagamos caro por objetos retrô. Não economizamos para ter uma geladeira Steigleder branca igualzinha à que existia na casa da avó. Ou um aparelho três em um idêntico ao que reinava na estante da sala. Somos colecionadores de nossos hábitos.

E aceitamos até os defeitos de volta. Queremos uma geladeira barulhenta como a de outrora, onde secávamos as meias nas grades de trás durante o inverno. E queremos um vinil que traga ruídos de cigarras e que pare mesmo em algumas canções.

Nossa vontade é pelo retorno da afetividade das coisas, somos capazes de girar o mundo à cata de relíquias, somos capazes de imersão digital em sites de busca, somos capazes de lances absurdos e irreais no pregão da infância. Não nos assustamos com os valores abusivos e agimos com ansiedade pelos negócios fechados a martelo das bolsas.

Parece bonito o apego, mas não é. Porque não damos valor nenhum para as pessoas retrô de nossas vidas.

Nossa avó, mais do que a geladeira, está ali disponível com a sua prodigiosa tapeçaria da memória e não a acolhemos em nossa casa. Nossos pais, mais do que o três em um, estão ali disponíveis com as suas histórias dentro de trilhas favoritas e sequer contamos com a paciência de ouvi-los.

Procuramos reaver um tempo sem os seus personagens principais. Acabamos nos interessando por um tempo vazio, absolutamente decorativo. E desprezamos o tempo real, vivo e biológico que corre em nossas veias e em nossos nomes.

As pessoas retrô são postas de lado, abandonadas. Logo elas, loucas por atenção. Reclamamos de suas falhas, naturais para a idade, para justificar um confortável distanciamento.

Por que se preocupar com a pele do passado se podemos garantir o luxo da alma, a reconstituição exata e emocional do que vivemos com quem nos criou?

Não há livro antigo que reproduza a sabedoria de minha mãe. Em vez de comprar uma edição rara em sebo, basta convidá-la a almoçar, que já desfruto de uma biblioteca inteira de primeiras edições.

É o sobrenatural da simplicidade me ensinando a ser feliz. Uma encadernação em movimento soltando as suas folhas e frases marcantes.

Ela me contou, por exemplo, que está grávida aos 78 anos. É um milagre mesmo. Disse para mim que "onde toca, engravida". Eu acredito. Pois ela toca em uma orquídea e fica grávida da mais sincera gargalhada. Ela toca em um parapeito de uma janela e fica grávida de uma rua. Ela toca em uma roupa no varal e fica grávida do sol. Ela toca em um castiçal e fica grávida das estrelas.

Não há como permanecer longe e indiferente a tantos novos irmãos surgindo a todo instante.

Publicado em Jornal Zero Hora em 08/08/17

Um comentário:

Unknown disse...

Engraçado; somos da geração Kichute sem meia, paçoca com Tubaína,Atari com dois "cartuchos", punheta de revista usada; que vendeu a mãe a prazo e levou os herdeiros p ver o Mikei...