quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

ERA SÓ TERRENO BALDIO!

Tenho um quebranto por uma espécie de chatice. A chatice carinhosa da memória.

Porque eu compreendo de onde que ela vem, e ela atingirá a todos, sem exceção. É o inoxerável legado da condição humana.

Depois da vaidade da aparência, da mão de obra, do sucesso e da potência etária, a única vaidade que sobrará em nós é da experiência.

Não seremos mais jovens para nos exibir, nem fortes para nos impor, a imaginação será uma operação menor em nossas faculdades mentais, restará tão somente lembrar e dizer que estávamos presentes na transformação da cidade e dos hábitos.

É a implicância natural dos amigos dos pais, que nos abraçam com susto: “não acredito que é você, eu já troquei as suas fraldas”.

Não leve a mal a observação, trate-a com a leveza da graça. Deve ser mesmo difícil rever alguém que foi bebê de colo. É ultrapassar a régua da existência, e usar a infinita fita métrica das palavras para mensurar as perdas e ganhos do amor e da amizade.

É a repetição querida de histórias do avô e da avó, que, ao me buscar em casa, novamente dirão: “eu vi esse bairro crescer, era só mato e terreno baldio”.

Se possível, arrume o melhor riso para não desampará-los no vácuo da biografia. Ficarão felizes com a audição atenta. Procuram testemunhas de seus feitos para justificar tudo o que enfrentaram em oito décadas.

É certo que, ao passar de carro pelo Beira-Rio, tecerão um comentário pela enésima vez: “lembro quando construíram o estádio sobre as águas do Guaíba”.

A conversa profética parece egressa das páginas do Antigo Testamento: eles suspiram com uma mirada funda e leem em voz alta trechos inteiros de seu diário.

Eles não repetem porque se esqueceram o que falaram um dia. Repetem pois não há como conter a estupefação de ter vivido muito. É um transbordamento incontrolável de recordações, que ultrapassa o muro da Mauá. “Nós enfrentamos a enchente de 41, quando o rio ocupou todo o centro, e andávamos de botes”.

Olhar, para eles, é sempre comparar, olhar é sempre reprisar, olhar é nunca mais ter os dois pés no presente. Os avós estão parte comigo e outra parte, remota e inacessível, lá atrás no tempo.

Escuto a história de novo como se fosse a primeira vez. Vejo que logo a mesma doença benigna da idade vai me atingir e espero que os meus netos partilhem a mesma complacência comigo.

Publicado em Donna ZH em 14/01/2018

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