Minha namorada tem um cãozinho. Cora. Branca, com o pelo fofo, graciosa, carismática. Não me estranhou nas primeiras visitas. Faço carinho forte em seu pescoço para mostrar autoridade. Quando ela me enxerga, dá piruetas, cambalhotas e aperfeiçoa uma mania bem peculiar de morder o rabo em movimentos circenses e repetitivos, como um helicóptero pousando.
É uma ginasta canina: apesar de mirrada (4 quilos) e de sua pequeneza de colo, pula meio metro na captura de brinquedos e ossos. Rápida, não ficaria atrás de um Grey Hound. Tem eficiência e comicidade, como Garrincha na linha de fundo. Seu andar lembra um desenho animado, com o movimento vesgo e embaralhado. Dribla a perna direita com a esquerda. Um andar fanhoso, que desperta piedade da pedra. Na hora de subir a escada, levanta as duas patas traseiras ao mesmo tempo, o que acentua a compaixão de manco. Transforma todo obstáculo em escadaria de igreja, toda caminhada em pagamento de promessa. O mistério lambe seus dedos.
Cínthya costuma levar a cadela na Praça da Encol. Acho que o nosso namoro evoluiu e poderia arrematar mais um grau de compreensão: partilhar o cachorro.
- Deixa?
- Não é incômodo? Não sei se é uma boa ideia...
- Sim, será divertido. Sim? Sim?
- Ok, tome cuidado ao atravessar a rua, ela é especial.
- Fique tranquila, espere em casa que a gente já volta.
No ano novo, colegas escrevem carta de intenções, o que deve ser feito para melhorar a vida nos próximos doze meses. Eu também, mas de segundas intenções e mastigo o papel para não sofrer constrangimentos. Passear com cão para seduzir era uma delas.
Debaixo de minha generosidade, escondia a astúcia de testar a Cora como chamariz feminino. Uma isca para pescar tubarões loiros e morenos. Fácil começar um assunto despretensioso com a mulherada sobre seus filhotes. Estão mais acessíveis do que nas baladas, onde é arriscado sobreviver ao exame rigoroso das amigas. Encontram-se leves na praça, vulneráveis, dispostas a confessar qualquer coisa sobre pet shops, efeitos de xampus e medicações, qualquer detalhe do cuidado animal. Nem um pouco dificultoso entabular um papo.
"Ai que lindo, que raça é?, como é bem cuidada, moram perto?, sempre vem aqui?, qual o signo do cão? e o seu?, mesmo?, eu faço igual, como temos afinidades!, me ensina a receita?, me deixa seu telefone para pedir conselhos".
Feito, não precisamos de mais nenhum pré-requisito a não ser amar cachorros. Tudo fica ainda mais excitante se os bichos decidem trepar em nossa frente.
Aprendi a cuidar da guia, a mantê-la próxima de mim, arrumei saco plástico destinado à higiene e parti na minha missão sagrada. Sentei no banco de madeira e aguardei o assédio. Porque não precisava me aproximar de ninguém, bastava aparecer no clube a céu aberto e juntar as sobrancelhas de responsabilidade. Quanto mais tímido, mais confiável.
Cora brincava com os cadarços soltos de meu tênis e, de repente, uma jovem morena e gostosa se aproximou.
- Que bonitinha, é sua?
- Claro que é, Cora.
- Qual raça é?
- Cusco, uma mistura com Terrier.
- Ah, você adotou?
- Meu coração não resistiu ao olhar carente dela.
(Já me projetava no cachorro, criando uma linguagem ambígua e indireta)
A conversa seguia exatamente como ensaiei, a moça tinha traços tailandeses, fogosos. Seu cachorro era um Jack Russel, de nome Rolo, raça que sinalizava um espírito de aventura.
Botei a Cora em meu colo, amansei meu nariz em seu focinho, preparando o agrado final, que geraria intimidade para confissões arrebatadas.
- Posso tocar?
- Sim, é mansa. Ela vai abanar o rabo de felicidade.
Seus dedos avançavam maravilhosos e torneados de anéis, as palmas abertas como uma escova. Quando ela foi tocar em suas orelhas, Cora produziu um salto fulminante, imprevisível. Sequer latiu antes do ataque. Não consegui contê-la. Com os dentes, puxou uma mecha da moça, gerando gritos afobados, gemidos histéricos e uma forçosa inclinação da cabeça.
Ainda ficou rosnando com o aplique arrancado. Salivando como um Fila albino em miniatura.
- Ela é horrível, você é horrível, não devem estar aqui. Vão embora.
- Desculpa, é a primeira vez que acontece...
Fugi do convívio correndo, proscrito do Bela Vista, ameaçado eternamente de desterro, proibido moralmente de frequentar o entardecer naquele lugar.
Não imaginava que Cora tivesse ciúme de mim.
11 comentários:
Cotidiano...
Feliz cotidiano! O canino, claro. Rs.
Boa, Carpinejar.
FELIZ 2010!
Linda crônica... Agora já sei o que fazer com minhas cartas de segundas intenções...
PS.: Sua foto da carteira de identidade me levou a questionar sobre a sua digital... Eu a achei, digamos, diferente... Ok, isso é redundância, eu sei. Ok, esqueça isso... (Não sei porquê, mas teimo em usar um excesso de reticências.)
Um abraço
Com tanto background em cachorras e tchuchucas, tem uma aqui em casa pra ser adotada. Só morde o dono, então o passeio continua garantido.
Valeu, Carpinejar.
Manda ver no Twitter.
Obrigada,
Jura.
kkkk...
Cachorros são os melhores vigilantes, mas sempre a serviço dos seus próprios donos!
Ahh... estes peluidos inconstantes...
Mas, adoráveis..Não achas?
Abraço prá vc!!!
Hahahahaha, mas quem foi que te disse mesmo que ela tinha ciúmes de você?!?! Ela estava é protegendo a "propriedade" de SUA DONA!!!!
Nota 10 pra Cínthya, pela cumplicidade com seu bichinho!!
Homens.... Sempre entendem tudo errado!!
Pelo menos foi o cabelo e não a cara. Se cora falasse, hein?
Ouvi sua entrevista do dia 30. "a inimizade é uma amizade mais severa" "acreditar
em papai noel é acreditar na amizade e no amor que também é invisível" etc... Fabrício, você é uma universidade !
Cora fora treinada pela dona! rs.. Abs! Maria Tereza. =)
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