quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A CULPA É DO KEEP COOLER

Arte de Marie Laurencin

Nos anos, 50, minha mãe bebericava poncho em suas reuniões dançantes.

Nos anos 70, minha irmã virava Martini com azeitona na discoteca.

Hoje a moda parece ser vodka e Red Bull nas baladas.

Estou somente comentando as drogas lícitas. Cada geração sofreu os efeitos colaterais do que consumiu antes da maioridade.

Peguei a safra mais careta do bar. Nos anos 80, eu bebia Keep Cooler nas festas de garagem. Não representava bem álcool, muito menos motivava a sair da timidez. Era o travesti de um refrigerante.

Guardo o gosto açucarado da bebida na língua. O Kiwi é eterno.

Lembro que rendi piada para muitos colegas. Aos doze anos, amigos anteciparam que Cláudia estava a fim de mim, só eu não percebia. Fraudaram bilhetes que pousaram em minha mesa na aula. Estranhava a generosidade popular pelo namoro. Quem não tem nada acredita em tudo. A guria veio para o meu aniversário. A turma batia em meus ombros:

- Parte em cima dela antes que seja tarde.

Ela estava com polainas e um casaco brilhante, uma combinação adequada para o brechó do período. Naquele tempo, a sensação é que todos usavam roupas emprestadas, colhidas ao acaso nas gavetas dos pais.

Suas franjas aumentavam as bochechas. Os brincos de argolas esperavam aias para serem carregados. Ela tinha lábios carnudos, transparentes.

Na maioria das vezes, minha coragem foi emprestada. Eu me aproximei e a convidei para dançar. Esqueci que não sabia dançar. Achei que fosse fácil, mas na hora não conseguia cantar e coordenar os passos. Se tivesse que dançar o hino nacional esqueceria a letra. Alguns já esquecem mesmo parados. Ela indicava os pés, eu embaralhava os joelhos. No fundo do quintal, com um globo improvisado de luzes, remexia num ritmo que somente eu ouvia. Distorcia, arranhava o compasso.

Demorei a me aproximar do pescoço de Cláudia, mais ainda para segurar sua cintura. Depois de um longo e silencioso ecoturismo em suas costas, tomado da respiração balouçante, arrisquei um beijo. Pulei como um cego ao seu rosto. Ela colocou as duas mãos em meu peito e pediu distância. Qualquer um entendeu como um empurrão.

- Não quero qualquer coisa contigo, Fabrício, somos amigos.

O fora surgiu no fim da música. Exatamente no último acorde. Sua voz ecoou pelo corredor, como um playback desmascarado.

A roda de impostores ria aos berros. Acompanhava nosso giro, torcendo pelo movimento de repulsa. Encarnei aposta, sofri zombaria e, por culpa do keep Cooler, não perdi a ingenuidade.

É um vício necessário. Talvez o que faço melhor. Fico pronto para me despedaçar.

Não estou sozinho. Recebo companhia a cada minuto na nau dos insensatos.

No amor, em algum momento, você terá que ser ingênuo e acreditar. Terá que largar uma vida, refazer sua vida. Terá que abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado. Terá que ser incoerente, contradizer fundamentos inegociáveis. Terá que rasgar a certidão negativa, a proteção bancária, os manifestos de aversão ao casamento e filhos.

Não dá para ser esperto sempre. Não dá para ser experiente sempre. Don Juan e Casanova também se quebraram. Napoleão e César também foram derrotados na intimidade. A ingenuidade é um poder terapêutico. Nada pode ser mais traumático e mais libertador dos costumes. É um instante definitivo e raro no relacionamento. Quando confiamos que será diferente, que somos eleitos por uma constelação de símbolos e casualidades, quando desistimos das armas e das reservas para se apresentar absolutamente disponível e vulnerável. Não há mentiras e formalidades, frases espirituosas e comentários sarcásticos. Há apenas uma burrice infindável, o beiço e a intenção de se entregar para uma mulher seja como for.

Pena que a ingenuidade tem que acabar mal. Caso contrário, não era ingenuidade, era sabedoria.

25 comentários:

Editorial Megantena disse...

Não há saída,o amor é um porre sem engov.
É somente a vontade de viver, não importando so riscos nem os risos.
No jogo do abre e fecha,o lance é não trancar as portas!!
Parabéns.
Abraço
André Custódio - megantena.blogspot.com

Editorial Megantena disse...

@drecustodio

Juliana Dalbosco disse...

PERFEITO! Como sempre!
Bjo

Rafael Noris disse...

Muito lindo, tocante, pude me ver nesta história, principalmente no que diz respeito a rasgar certos manifestos e largar certos pensamentos. Fato é que o mundo é grande demais, para quê viver com ideias tão pequenas. Abraço!

Samyta disse...

Fico impressionada com a sua capacidade de escrever as minhas verdades, Fabrício.
Talvez sejam as verdades do ser humano... Tomara.
Parabéns!!!

Virgínia Santiago disse...

O amor deixa minha alma aos pulos.
Choro de tanto rir do que ele fala.
Traz luz para o meu dia,
Luar para a minha noite.
O amor é o feijão no meu arroz.
Simples como a chuva na calçada.

aaa. disse...

Ótimo, tanto que nem sei como comentar.

nadia lopes disse...

Fabro querido, acho que vou ter que tomar uns keep collers se é que ainda existam...senti uma saudade danada da minha ingenuidade sábia, da minha entrega sem receios...da esperança risonha e supostamente invencivel, uma baita saudade de uma tarde de antes, de uma musica lenta,saudade de mim...

Muryel De Zôppa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Muryel De Zôppa disse...

'manifestos de aversão ao casamento e filhos.'
você, definitivamente, é um bom escriba! não que aventureiros como Beber, Scott, Montenegro, Domeneck (aqui exluindo Barros - com quem te tomo com certo diálogo -, Secchin e outros mestres), não arranhem boa envergadura; ocorre que sua ótica é dum senso (posso dizer "serenidade"?) estilística que chega a incomodar, fina. claro que há ranhuras, poemas mancos, ruins, como todo conjunto o tem, mas aqui comparo Carpinejar com Carpinejar, e daí perco eu enquanto leitor, entende? não transei ainda o Canalha!, mas conheço quase todos seus petardos e posso dizer pros logradouros com propriedade que o troço é bom! tenho que entregar uma resenha (meeeetido!! rs) pra uma revista aí e penso em discorrer acerca do 'As Solas do Sol', daí gostaria de enviar pro amigo o barato. caso possa, me passe seu e-mail que ficaria de cá feliz em enviar meu acometimento antes de publicar. ademais, tua poética impregna na gente e dá um cheiro de ontem... e isso é bom. abraços!

Muryel De Zôppa disse...

ah, tá! a comparação com os outros desajustados nada tem a ver com comparativismo rasteiro, ok? você mesmo já esmiuçou que poesia não é pra enfrentamento, quem é melhor ou pior... faço coro! ocorre que aqui traçei apenas pra móde diversidade, jogo estético, achismo, só. muita sorte nas empreitadas e saúde pra bebericar muito vento ainda. chau!

Luciana F. disse...

FABRICIO, nada a ver com o post, mas vi seu comentário na matéria sobre o show do Guns em POA e deixo o aviso aos fãs: às 12:10 do dia 18, comprei os ingressos no site da ticktetsforfun, pela promoção citibank. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir, hoje, que o mesmo havia sido clonado e utilizado para compras no DF. Consegui bloquear a tempo, mas penso que muitas pessoas podem ter esse mesmo problema. Como sei que o clone foi pelo site dos ingressos? Foi o unico local em que usei o cartão recentemente e o golpe ocorreu no dia seguinte! Abraço aos roqueiros de plantão e cuidem-se!

Anônimo disse...

Carpinejar, que post incrível!
Principalmente quando se fala sobre rasgar os manifestos de aversão ao casamento e filhos. Isso com certeza já aconteceu com grande parte das pessoas.
Interessante como você consegue tocar em um assunto tão discutido mas com uma visão própria e peculiar. Adorei!
Acompanho aqui, e acompanharei sempre!
Até.

Unknown disse...

se abrigassemos uma total sabedoria fugiríamos de amar e não de ser amado.
escritor foda e texto foda.
nem preciso dizer que adorei...

Ivan Kolberg disse...

Cara, to visitando o blog pela primeira vez e fiquei totalmente sem palavras. Primeiro, com a linda frase que tem na parte de cima do seu blog e segundo com esse texto incrível! O pessoal aí em cima resumiu bem, isso é vida, é o q muita gente vive em seu cotidiano.
Parabéns!

Aline Aguayo disse...

Asbe que eu adoro essa impressão de roupas emprestadas? Adoro releituras e reaproveitamento.

Adooorei teu blog, e já esta nos favoritos. Assim, sem pedir licença mesmo.

Anônimo disse...

Olha Fabrício, nunca li um texto teu e esta é a primeira vez que entro no teu blog, mas minha esperança é que tu, como um "jovem escritor" faça a diferença, ou seja, preencha o incrível vazio artistico que vivemos...abraços.

Tiago Medina disse...

Um dos teus melhores, este!

Ludimila Lamounier disse...

Fabrício,
leio você sempre, mas é a primeira vez que comento: este é realmente incrível, amei!
Parabéns! (como sempre)
Ludimila

Adélia Carvalho disse...

Eh, saudade dessa ingenuidade que nos toma e parece cochichar em nossos ouvidos que podemos fazer tudo, que o caminho traçado será exatamente o dos nossos sonhos mais desejados.

Jana Lauxen disse...

Não dá para abraçar o amor e continuar esperto na filosofia de botequim?

Ela disse...

Capaz, vodka com redbull nada! A culpa agora é do Smirnoff Ice certamente.

LIRIS LETIERES disse...

Keep Cooler tem muitas histórias...Sei bem como é! Tin! Tin!

*alax100% disse...

Muito bom, embora eu nunca tenha gostado de ler, gostei muito desse seu conto que até me deu vontade de descobrir novos mundo, parabéns pelo trabalho

Anônimo disse...

parece um viadinho nostálgico.