quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DOIDEIRA DESCARTÁVEL

Arte de Osvalter

Tomei um porre e não lembro nada.

Depois de toda bebedeira, adotei essa desculpa, mas eu me lembro de tudo. Sempre me lembrei. Até do que não vivi, guardo intactos os dilemas um pouco antes da atitude. Lembro com quem transei, como transei, a cor da calcinha dela, da arruaça que aprontei na festa, da minha dança vampiresca no balcão do bar que assustou quem jurava que me conhecia. Lembro que estava especialmente desafinado no karaokê, que trocei de um policial, quase fui preso, que mijei num hidrante pensando que fosse uma árvore, que beijei aquele boneco de vento do posto de gasolina.
A amnésia é uma invenção moral. Para evitar constrangimentos, para prevenir explicações, que são a parte cansativa da aventura. É totalmente irritante o inquérito após a embriaguez: dizer o que, como, onde, para quê?

A convenção se consolida na adolescência quando os pais perguntam como estava a festa enquanto o banheiro exala um cheiro familiar e terrível de vômito. Não estão perguntando sobre a festa, doce ilusão, mas sabendo do estrago e testando nossas histórias.

Desde lá, desprezamos as reminiscências pela resposta consensual e simpática: não me lembro. O assunto termina ali. Todos acreditam porque também possuem coisas terríveis para serem esquecidas em seu passado. É uma troca: não lembra o que fiz e eu não lembro o que fez.

Às vezes gostamos de beber mais da conta, para a mentira ser menos mentirosa. Raramente o excesso funciona. Pode estragar o corpo, não a memória. Eu somente me esqueço em coma alcoólico — e olhe lá.

Mais simples alegar que perdemos os arquivos, que o disco rígido foi corrompido. Se a gente diz que recorda, haverá algum chato perguntando o motivo de tanta agressividade. Há uma crença de que ninguém se destrói sem motivo. Bobagem. Eu me destruo para encontrar um motivo.

Somos cínicos, não ingênuos. O cinismo é uma ingenuidade perversa.

Talvez seja uma prova de companheirismo, para os amigos descreverem nossas peripécias com detalhes, como se a gente não estivesse presente e as circunstâncias fossem inéditas.

A graça da brincadeira é simular o total desconhecimento dos últimos instantes da própria vida. Ainda comenta-se com ceticismo: “Não entendo onde estava com a cabeça”.

Os amigos adoram editar nossos melhores piores momentos. O curioso é que ninguém é louco sem testemunhas. As mais cruéis bebedeiras partem de um cenário planejado. Carregamos os fieis escudeiros a tiracolo, para assistir a desintegração da personalidade. Premeditamos, portanto, o vexame. Isolado da audiência, apenas choramos e manchamos o travesseiro. A dor é palhaça quando desfruta de público e se sente segura entre conhecidos. Analisamos o lugar da queda, para verificar se é confortável, e se haverá pessoas do bem para nos amparar e nos carregar no colo. Não é assim?

Diria que o exagero é calculado: não acontece quando somos estrangeiros numa balada. Não é inconsequente como ousamos alardear. A explosão não se desenrola à toa, ao léu, surgirá em locais prediletos e já frequentados. Olharemos as portas de incêndio para atear fogo na garganta.

O bêbado é uma agência de notícias. Não lhe interessa beber, porém ser visto bebendo. Não é didático, é redundante. Avisa que vai beber todas. Em seguida avisa que está bebendo. A cada copo virado, nos mantém informados de que está bebendo mesmo. No decorrer, vai concluir que está bêbado, aciona o saquinho de risadas do bolso e não para. Mesmo bêbado, continuará bebendo para reforçar que está bêbado.

Desesperados são os que liquidam a garrafa, solitários em seu apartamento, longe de qualquer encenação. Os exibicionistas etílicos não passam de carentes.

A embriaguez seguida de desmemória é uma armação. Desconfie. Queremos enlouquecer um dia, não manter a loucura durante a semana. Trata-se de uma doideira descartável, como seringa, camisinha, absorvente. Aprontamos e nos aprumamos rapidamente para seguir o trabalho e continuar encarando o chefe. A onipotência não está em fazer, mas em fingir que ninguém viu e que não lembramos.

O esquecimento não é para qualquer um. Tem que merecê-lo.







Crônica publicada no site Vida Breve

18 comentários:

Gabrielle disse...

Parabéns pelo trabalho, Carpinejar!

Acompanho você desde que te encontrei por acaso no twitter e admiro esse seu jeito de assumir as fraquezas e mentiras do ser humano. Alguém precisava fazer isso por todos nós.

Abraço,
Gabrielle.

O Neto do Herculano disse...

O cinismo nem sempre é uma ingenuidade e esquecer pode ser bem cômodo.

Ana Cristina Cattete Quevedo disse...

"O esquecimento não é para qualquer um. Tem que merecê-lo"
Ai, posso usar como mantra? kkk

Na última vez que passei dos limites (tem alguns anos já), entrei em casa trocando as pernas, derrubei um vaso de barro enoooorme, quebrando-o.

No dia seguinte, no café da manhã, meu pai: "entraram em casa de madrugada, quebraram meu vaso do coqueiro. esses vandalos, né? o Brasil não tem jeito."

É, pai, acho que eu ainda tenho jeito haha.

=)

Unknown disse...

A amnésia é uma invenção moral... boa! Eu nunca fiquei bêbada, que eu me lembre, mas vou me lembrar desse texto se isso um dia contecer.

William disse...

www.abcdasaude.com.br/artigo.php?23 - com certeza muitas pessoas mentem quanto ao fato de esquecimento... porém a aminésia alcólica realmente acontece, e comigo já foram no mímino umas 6 vezes, já tentei parar e refletir sobre a continuidade dos fatos, mas sempre fica um trecho em que eu não consigo me lembrar de absolutamente nada

Anônimo disse...

Meus parabens pelo post excelente!
Concordo muito com o que escreveste! Lembrei-me de um post ironico em meu blog(sobre o "mesmo" tema)http://monologay.wordpress.com/2009/09/25/sou-hetero-eu-so-estava-bebado/
Amo seus twits, te acompanho desde que te conheci na Feira do Livro de Canoas.

Abraços e muito sucesso em 2010

Anônimo disse...

Belo texto, como sempre, Fabro, mas tenho que discordar. (In)felizmente já fiquei bêbada algumas vezes e, por mais que tente, não consigo me lembrar de determinadas coisas. Beijos, parabéns pelo blog novo! ;-) Mônica Klafke

Tamiris disse...

Acho que dizer somente que é mais um texto como todos os seus maravilhosos, e verdadeiros, seria mto pouco, mas infelizmente é somente oq podemos fazer...

Gostaria de te parabenizar pelo dom maravilhoso que deus concedeu a ti.
Admiro os seus textos, e em mtos me identifico.
sua forma de escrever é atual e verdadeira...

Parabens novamente, por nos presentear com estes textos.

Abraços

Flor de sal disse...

Você é o absurdo inconsciente. Incrível como poetisa as verdades. lendo o post,carregava a dúvida do não porre, do meu estado alucinado, das muitas que poderiam sair desse corpo que acompanho de perto. Agora sei, e seria atenta observadora do meu porre.

Beijos

Adélia Carvalho disse...

e com certeza o esquecimento é o melhor remédio para ressaca.

Paulo-Roberto Andel disse...

estou a seguir a nova versão deste fantástico blog!

abraço!

http://paulorobertoandel.blogspot.com

Anônimo disse...

eu tb tenho memória seletiva pra certas coisas. principalmente para gafes fartamente cometidas por mim.....é isso melhor esquecer.
*
Ah, meu xará, gostaria de saber se vc poderia dar a honra de dar uma passadela no meu acanhado blog?
http://narroterapia.blogspot.com/
Sabe como é meu blogzito tá carente de seguidores, comentaristas etc, tenho apenas leitores encima da goiabeira...
abs

MOMENTOS disse...

Seguir você no twitter me permitiu conhecer o seu blog e lendo seus textos me apaixonei pela forma que consegue escrever fugindo da realidade virtual.
É a mais pura verdade: ninguém esquece nada a menos que não queira lembrar-se. O porre só dá confiança e segurança para agir sem as restrições da sobriedade.
Um abraço.

Menina_Mulher disse...

"Eta vida besta, meu Deus!"
Esquecer?? Jamais!!
Viver?? Sempre!!

Ler o que escreves é a certeza de que alguém fala a minha língua.

Parabéns!!

Anônimo disse...

Até quatro anos atrás fecharia com vc e suas palavras... Até quatro anos atrás, quando me formei... e a festa de formatura, em minhas lembranças se resume a antes e depois com breves lampejos no meio (em que eu saltitava sobre os "pufes" do lounge)... Aí, confirmei que o que julgava mentira, realmente acontece. Mas concordo que a maioria mente sobre o esquecimento. Total conveniencia... para fugir do "julgamento".rs,rs
E continuo fã!! Agora de visual novo!! Parabéns! Tá lindo!

Camila de Souza disse...

Li uma vez sobre a verdade e a fábula. Ninguém gostava da verdade nua e crua, a fabula percebeu isso e chamou para acompanhá-la. Assim as pessoas ouviriam a verdade enfeitada através da fábula.

Sua verdade é bonita, Carpinejar.

Abraços,
Camila
http://ilimitada-mente.blogspot.com/

Miro disse...

Acho o máximo contar verdades...
"Exagerei, fiz isso e aquilo..."
Mas sem alardes.
Só fez porque estava com o espírito pra fazer aquilo, e não porque é bonito pagar de bêbado louco e inconseqüente.

Viva.

Guilherme Ferreira disse...

costumo dizer que amnésia alcóolica não existe, porque nunca me lembro de ter tido uma!

excelente!