sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

DUPLA FALTA DE PERSONALIDADE

Arte de Francis Picabia


A namorada desconfiou quando desfilei com a roupa do seu irmão. Passaria a semana em seu apartamento e preparei uma mala de intercâmbio para diversificar os turnos. Dez camisetas, calças, camisas de festa, tênis e sapatos. Não sujei praticamente coisa alguma.

Por que eu não saía com minhas bermudas?, ela quase me perguntava. Escolheu suspirar no lugar. Para ser sincero, bufou. Bufar é um suspiro com raiva.

Durante cinco dias, fardei-me com calção e camisetas esportivas do Gustavo, que tem estatura e peso iguais ao meu e estava em Florianópolis. Não tive sensibilidade para notar o quanto é desagradável. Não é excitante me enxergar passeando no sofá como um parente. Quase abrimos os álbuns para rememorar os pais em comum.

Lembro que pegar a roupa dos outros é relaxante, reinauguramos as pernas e os braços nas mangas e bainhas fora do nosso tamanho. O primeiro empréstimo foi numa festinha aos cinco anos. Na afoiteza do parabéns a você, naquele amontoado selvagem por um lugar perto das velas, pestinhas derrubaram guaraná na minha camisa branca de babados e o dono da casa me alcançou (forçado pela mãe) um conjunto azul de marinheiro. Eu que empregava o mesmo escudo de Elvis em todo encontro social, agora mudava a fantasia. Um alívio brincar de morto.

Mas não é avareza, muito menos diversão nostálgica a utilização de um armário suplente. Eu me levanto mais cedo do que Cínthya. Para não acordá-la, fecho a porta e me despeço dos meus objetos. É sempre um incêndio, não há condições de carregar nada, folga para escolher o que é mais importante nas próximas horas, não transporto sequer os chinelos. Pulo da cama e escapo das labaredas dos seus ouvidos. É insano, porém necessário. Ao aparecer para recuperar um livro ou um casaco, vou derrubar uma xícara, arrastar o abajur, pisar em gnomos. Sou muito atrapalhado para fazer silêncio.

Ou fico seminu até o meio-dia ou roubo as peças do aposento vizinho. Nem adianta explicar para ela. Ela jura que não desejo gastar meu figurino. Está braba comigo porque não sou honesto, porque escondo as verdadeiras intenções.

A sorte é que sobra resistência para defender meu ponto de vista. Convenço pela repetição dos argumentos. Repito e repito até enlouquecê-la. Suponho que ela nunca aceita as explicações. Muda de assunto, mas não aceita. Acredita que é exagero, que é uma desculpa furada, que não respeito o inconsciente.

Colocando de novo minhas roupas, com saudades dos botões e das cores extravagantes, aceito que ela está certa. Falsifico origens, confundo para simular profundidade.

Entre nós, confesso que meus mistérios são óbvios. Fazia tempo que desejava botar as roupas de seu irmão. Agora posso voltar a ser o namorado dela.

4 comentários:

O Neto do Herculano disse...

Às vezes prefere-se ser o outro, cegando-se para nossas próprias qualidades e venturas; mas nem sempre a grama do vizinho é mais verde - muitas vezes não passa de um jardim de ervas daninhas.

Carmem Gomes disse...

É tão bom de vez em quando trocar de pele. Renova-se. É como viver por instantes a vida do outro. Fabro adoro vc e tudo que escreves. Um beijooo. Carmem (joao Pessoa-Pb)

Adélia Carvalho disse...

Entrar no figurino do outro é uma oportunidade boa de buscar em nós um outro personagens...vez ou outra o nosso precisa descansar! Abraços.

Angel Cabeza disse...

Sou muitos sendo eu mesmo. E isso é uma das verdades da vida. Não trocamos de roupa, mudamos temporariamente de espírito.
Blog novo aprovado.

Abraços do sócio.