Tenho rinite alérgica. Sou daqueles que não dependem do seu bom gosto, mas da escolha dos outros. Como um time que nunca será campeão pelas suas pernas. Aguarda resultados paralelos para conquistar o campeonato. Meu olfato é tênue. Todo cheiro excessivo e adocicado, fico indisposto. Vêm tosses gritadas, enxaqueca e tonteira. Estarei imprestável para o resto das horas.
Pode ser minha noite perfeita: eu me arrumo com rigor, escolho o restaurante predileto, solto frases engraçadas, minha namorada já elogia o romantismo do enredo, a urdidura da cena. Sabe aquele momento em que descerei a lomba com a bicicleta das palavras, nem preciso mais pedalar? Comigo, não funciona. Tudo acabará porque, na mesa ao lado, janta uma senhora com duas camadas de um perfume que lembra talco líquido. O corpo adoece, mergulha em depressão respiratória, não me obedece mais. Tento não respirar, avermelho as bochechas, escapa a concentração e o verniz da cafonice mergulha nas terminações nervosas. O que me resta é congelar o relacionamento para o dia seguinte. Claro que o sexo não terá o mesmo gosto, mas fazer o quê?
Meus vexames são inspirados. Vivo sendo boicotado.
Começa com um vizinho que usa desodorante como creme hidrante. Por onde anda, deixa um rastro insuportável. Não deve ser spray, mas aquela embalagem que se aperta como pasta de dente. Com um furinho na tampa. Conheço desodorantes econômicos e versáteis - empregados também como detergentes. É o caso dele. Não vou mencionar a marca para não fazer merchandising. Nome do diabo não se fala. Demoro um bom tempo para tirar a sensação de secura da boca. Ele transforma a rua numa saída de construção civil.
A romaria prossegue no elevador do emprego. No último instante, quando a ascensorista suspira diante do painel iluminado, entra um executivo em decomposição perfumosa. Com uma fragrância francesa, cara, dada pela esposa para espantar a concorrência e indiscrições orais. Se boicotar o presente, seu casamento termina. O azar é que subirá ao meu andar. Prefiro o cheiro de naftalina e da Minancora. Ao menos, representam cheiros familiares.
Repito o martírio no teatro e no cinema. Desde a infância, o fede-fede me procura. Larguei sessões pela metade. Coleciono filmes inacabados, gafes, crises histéricas de espirros. A educação é cheia de pudores e não pretendo atrapalhar os demais espectadores.
A coriza me aniquila. Inviável conversar com o nariz em prantos. Não há como ser heroico com coriza. A masculinidade morre na primeira fungada - é o macho derretendo. Tuberculose, pneumonia, febre amarela, doença de verdade não diminui a hombridade. Envolvem complicações de saúde que nos põem em luta, num estado primitivo de animal combatendo a fraqueza. Seremos sobreviventes. Seremos mais nobres pela batalha. Receberemos medalhas de honra ao mérito.
Ao abandonar o hospital, ouviremos comentários viris dos familiares. "Ele venceu a tuberculose, acredita?"
Traremos uma tristeza no olhar, um abatimento que confere mais legitimidade ao riso. A sedução requer tristezas antigas. Não conheço sedutor sem dor. A delicadeza deve estar acompanhada de um vento agreste, hostil. Nada como uma cicatriz ou uma ferida para acentuar o mistério. A incompreensão colabora para a malícia. Um homem somente é confiável depois que sofreu.
Coriza, por sua vez, não atrai seriedade. É uma bobagem. Produz unicamente constrangimento. Pede lenços de papel. Quer algo mais desmoralizador do que carregar uma caixinha de guardanapos no bolso do casaco?
As mulheres não aceitam como desculpa. Confundirão nosso bigode com buço. Homem com coriza é fraco demais para o acasalamento, riscado da cadeia alimentar.
- O que deu errado com ele?
- Foi a coriza!
É igual a espalhar a fofoca de que o cara broxou. Coriza vem de um resfriado. E resfriado é a broxada da gripe. O sujeito não conseguiu nem uma gripe, teve resfriado. Sua reputação desaparece.
As essências desencadeiam pavores diários. Comigo, as flores não são poéticas, são carnívoras.
24 comentários:
sensacional!
Oi, Carpinejar.
Estou lançando meu segundo livro na internet.
Por favor, acesse meu blog e dá tua opinião sobre "O melhor livro do ano (de acordo com crítico subornado pelo autor)".
Este é o link:
http://rodrigopolicarpo.blogspot.com/2010/01/melhor-livro-do-ano.html
Obrigado.
Abraços.
Pode clicar no meu nome para acessar o blog também, já que o endereço que eu digitei no comentário acima não pode ser clicado.
Obrigado.
Muito, muito bom!
Eu tenho alergia crônica na pálpebra. Mais ou menos de 3 em 3 anos, auxiliado pela posição dos astros, meu(s) olho(s) incha(m) e eu viro um monstro, primo do quasímodo. Quando acontece, eu me escondo na caverna mais próxima. Literalmente.
Parabéns pelo sucesso!
Ai, Fabro, que pena de vc... também tenho "espirrinite" aguda, o Allegra D e o Polaramine (xii, fiz merchandising!) nem funcionam mais, de tanto que já me encharquei deles. Nunca li uma imagem que descreva tão bem o quadro como "nariz em prantos".
Agora, nunca tinha pensado no problema sob a perspectiva masculina. Coriza é a kriptonita do arquétipo viril, né?
Polaramine??
Tenho estoque no armário...
Coitados de nós, Fabro!
"...Um homem somente é confiável depois que sofreu..."
Como um macho viril que também é assolado pelo mesmo mal de narinas broxantes, e com basicamente os mesmos gatilhos, manifesto meu apoio.
Começa a frequentar o FA (Fungadores Anonimos) e quem sabe pelo 10° passo a vida se mostra um pouco mais fácil.
texto fabuloso, sempre!
abraço!
Eu como você também tenho rinite alérgica é para piorar ainda fico de mau humor quando estou em crise... Não basta-se a TMP.
Você sempre nota mil!!!
Ps- Aproveitei e vi o seu vídeo no Jô.
A honestidade é inevitavelmente poética. Parabéns.
carpinejar,
eu casaria contigo.
teu twitter melhora os meus dias.
;)
alice castiel.
Fiz dos antialergicos meu vício,
sou um cara que evita aspirar,
mas tenho muitas aspirações.
Ai, mais rapazes "espirriníticos".
Gente, juro que tô morrendo de dó. Prometo que terei compaixão com todos, e divulgarei a campanha entre as mulheres.
Kkkkkkk ri horrores me identificando com cada palavra, sensação e situação. Agora mesmo estou num momento de crise e o maldito lenço me acompanha, silencioso e presente.
Obrigada por sua escrita engraçada e verdadeira que acompanho desde o tempo dos poemas na Vida Simples!!
bah! tenho uma rinite furiosa, me identifiquei muito. foram muitos momentos de rebaixamento, de fraqueza, de vexames... tenho a impressão de que a vida dá uma pausa; nada pode ser feito. nada!
mulheres, tenham dó.
obrigado, carpinejar.
Nossa, como me identifiquei. Sofro dos fede-fedes. Fico tonta irritada. Cheiro de perfume barato me deixa sem rumo.
E sim, coriza remete a fraqueza.... organismo fraco... meu namorado vive com rinite, e sempre digo a ele quase sem querer: nossa, mas de novo, tá precisando de tomar uma vitamina....
rs....
Transformar a rinite e os encontros com os excessivamente cheirosos em poesia, é o que me faz achar sua escrita maravilhosa! Adoravel.
http://adelia.carvalho.zip.net/
Olá, acompanho seu blog há uns 3 meses, adoro oque você escreve.
Mas sobre sua frase lá de cima tenho minha própria versão: Liberdade na vida é ter um amor pra se aprender!
Tenho um blog de poesias, se quiseres visitá-lo, será bem vindo.
http://extremosdemim.blogspot.com
Saúde e criatividade pra ti sempre.
Bjs
Débora Vasconcelos
Quem diria que problemas alérgicos se tornariam poesia?!
Fantástico!
Beijos!
muito bom... te conhecer e nos conhecer a cada texto seu!
Abraço inodoro!
=)
Fleurs du mal..amo demais a tua escrita com o sutil toque de Baudelaire. Preciosa!
A coriza também me aniquila! Ótimo texto, pra variar! Maria Tereza =)
Oi, Fabrício!
ADorei o texto! Aliás, é raro não gostar...rs
É bom estar aqui, no seu novo espaço.
Um beijo
Falou tudoooo, teve um cara q broxou em td, na coriza e na broxada propriamente dita, tava me enervando a coriza, aff
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