O rapaz fugiu do abraço e beijou meu rosto. Lascou um beijo de despedida, proibido.
Estava saindo de uma reunião. Era o clássico encontro de quem desconhece o nome e recebe o cartão de visita.
Ele me ofendeu com sua pele reluzente, macia. Não aparentava nenhum fio de barba. Fiquei meio perplexo. Lisa como carne rosada de bebê. Uma planura de menina.
Levei um choque, convenhamos. Não assimilava como ele mantinha tal pluma loira. Quase pedi a receita, por curiosidade. Talvez tivesse sido efeito de um peeling. Toda gente que passa por um peeling alega que tomou sol. Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam.
O cara não deveria usar barbeador, mas pinça. Ou se depilava com cera quente. Algo inacreditável. É óbvio que pensei que era gay, não fui adivinho, difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia.
Eu nunca tive descanso com a face. É masculina de tantos maus-tratos. Eu me corto, arrebento espinha, crio rebanho de brotoejas, suporto queimaduras. A lâmina é ardilosa. Sofro o terror de estancar uma bolha do pescoço quando estou atrasado. Ponho papel higiênico e sopro para que seque rápido.
Mas não troco minha armadura de espinhos por nenhuma face lisa. Acho que mulher prefere enxergar um macho com filete de sangue na bochecha do que uma porcelana da Dinastia Ming, dá uma dignidade de batalha, é uma abertura para ela perguntar se me cortei. Eu me orgulho quando minha namorada comenta que arranho seu rosto. Sinto-me poderoso, animal, feérico. Zerei o cabelo de propósito para arranhá-la com toda a cabeça.
— Ui, tá picando?
Ela pensa que vou aparar, pois se engana redondamente. Permaneço escova de tanque, as felpas duras e agressivas. Não ponho fora chance de ouvir seu ui. Gemer é o começo da glória.
Heroísmo é chegar ao trabalho com manchas minúsculas e vermelhas na gola branca e engomada. Os colegas vão respeitá-lo pelo expediente inteiro. A luta com o fio do ferro não é justa, não é honesta — abrirá suas artérias na primeira distração. Eu me barbeio para me manter vivo: é a gilete ou eu. Ela não tem piedade.
Despertar desafiando o queixo me põe excitado, fornece adrenalina ao restante das horas. Não acordo com o banho, mas com o fio da navalha pressionando os poros. É uma arte matemática, preparar espuma, separar a bacia de água quente, afiar o instrumento e desenhar de baixo para cima para depois arrematar aos lados. Guerra recompensada pela loção pós-barba. O perfume chega a fazer fumaça. Naquele momento de largar o produto no rosto, entenderá que homem não massageia o couro, dá tapa em si.
Aprendi com meu pai que aprendeu com o avô que aprendeu com o bisavô. Procurar conservar o perfeccionismo de um açougueiro, e ainda retribuir com a gorjeta do riso.
Saio convencido de que sou um samurai, um dos últimos do bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vou comemorar ao abrir a porta e receber o vento friozinho na cara. A primavera provoca um arrepio inominável. A ardência maravilhosa de quem se machuca todo dia para não ter vergonha de suas dores.
Pretendo convidar o rapaz para um duelo. Que escolha o creme.
Estava saindo de uma reunião. Era o clássico encontro de quem desconhece o nome e recebe o cartão de visita.
Ele me ofendeu com sua pele reluzente, macia. Não aparentava nenhum fio de barba. Fiquei meio perplexo. Lisa como carne rosada de bebê. Uma planura de menina.
Levei um choque, convenhamos. Não assimilava como ele mantinha tal pluma loira. Quase pedi a receita, por curiosidade. Talvez tivesse sido efeito de um peeling. Toda gente que passa por um peeling alega que tomou sol. Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam.
O cara não deveria usar barbeador, mas pinça. Ou se depilava com cera quente. Algo inacreditável. É óbvio que pensei que era gay, não fui adivinho, difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia.
Eu nunca tive descanso com a face. É masculina de tantos maus-tratos. Eu me corto, arrebento espinha, crio rebanho de brotoejas, suporto queimaduras. A lâmina é ardilosa. Sofro o terror de estancar uma bolha do pescoço quando estou atrasado. Ponho papel higiênico e sopro para que seque rápido.
Mas não troco minha armadura de espinhos por nenhuma face lisa. Acho que mulher prefere enxergar um macho com filete de sangue na bochecha do que uma porcelana da Dinastia Ming, dá uma dignidade de batalha, é uma abertura para ela perguntar se me cortei. Eu me orgulho quando minha namorada comenta que arranho seu rosto. Sinto-me poderoso, animal, feérico. Zerei o cabelo de propósito para arranhá-la com toda a cabeça.
— Ui, tá picando?
Ela pensa que vou aparar, pois se engana redondamente. Permaneço escova de tanque, as felpas duras e agressivas. Não ponho fora chance de ouvir seu ui. Gemer é o começo da glória.
Heroísmo é chegar ao trabalho com manchas minúsculas e vermelhas na gola branca e engomada. Os colegas vão respeitá-lo pelo expediente inteiro. A luta com o fio do ferro não é justa, não é honesta — abrirá suas artérias na primeira distração. Eu me barbeio para me manter vivo: é a gilete ou eu. Ela não tem piedade.
Despertar desafiando o queixo me põe excitado, fornece adrenalina ao restante das horas. Não acordo com o banho, mas com o fio da navalha pressionando os poros. É uma arte matemática, preparar espuma, separar a bacia de água quente, afiar o instrumento e desenhar de baixo para cima para depois arrematar aos lados. Guerra recompensada pela loção pós-barba. O perfume chega a fazer fumaça. Naquele momento de largar o produto no rosto, entenderá que homem não massageia o couro, dá tapa em si.
Aprendi com meu pai que aprendeu com o avô que aprendeu com o bisavô. Procurar conservar o perfeccionismo de um açougueiro, e ainda retribuir com a gorjeta do riso.
Saio convencido de que sou um samurai, um dos últimos do bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vou comemorar ao abrir a porta e receber o vento friozinho na cara. A primavera provoca um arrepio inominável. A ardência maravilhosa de quem se machuca todo dia para não ter vergonha de suas dores.
Pretendo convidar o rapaz para um duelo. Que escolha o creme.
Crônica publicada no site Vida Breve
22 comentários:
Muito bom... você é o máximo.
Simplesmente..... SUBLIME
É uma leitura corrida, rápida que te diverte e te remete as caricias do teu namorado que eu retrucava 'aí, ta machucando' realmente não tinha pensado que ele adorava.
Beijo
A lâmina pode ser desafiadora, mas aquela barba "por fazer" é muito mais atraente! #fato
Muito inteligente! Texto divertido e ao mesmo tempo com um estilo "sombrio" de guerra. Grande observador, parabéns.
Me ri toda. Adoro essas prosas do cotidiano (de vocês, homens, no caso), de quem aceita as inevitabilidades da vida e, claro, suas delícias.
Eu, aprendiz das letras, me super inspirei hoje, e vou copiar sua ideia, ok? Isso merece um tipo de resposta, não, uma conversa paralela, eu diria.
Grata por compartilhar!
Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam. incrível!!!
e é impressionante como as pessoas se embelezam para se sentirem menos feias do que as outras. às vezes parace mais que o importante não é sentir que você está melhor hoje do que estava ontem. tem sempre que haver um "do que" para que a frase e a vida estejam completas.
grande escrito, Fabrício, gostei muito.
sou novo por aqui e, como bom mineiro e hospitaleiro que sou, convido a visitar o meu blog: oapanhadordeletras.blogspot.com.
grande abraço.
Olha prefiro minha pele lisinha mesmo...
Mas, gostei muito da crônica!
Vou confessar que eu preferia nao ter o trabalho de fazer a barba. Acho a pele lisa muito mais bonita e atraente, acredito que podemos saber ate a classe social de um homem por seu rosto. Mas tenho que concordar que eh uma delicia sentir o frescor de um pos barba e o vento friozinho na cara!
Nao entendo como as mulheres podem achar agradavel o arranhar dos pelos! Quando eu beijo quero eh mais sentir o macio da pele!
Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam mesmo..!
Incrível como você consegue transformar coisas corriqueiras do dia-a-dia em textos maravilhosos! Adorei!!
http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/
Realmente ...
plenamente ...
Barba por fazer é bem masculo^^
AdoroOoOo
( Não ponho fora chance de ouvir seu ui. Gemer é o começo da glória) --> Adorei essa parte^^
Fabrício, uma coisa muito me intrigou: no rosto, como você assopra? Te desafio a um duelo!
Muito bom!
Otimo texto!
Prefiro uma barba arranhada mesmo, mas nos mulheres tambem sofremos:depilacao nao e pra qualquer um. Ficar lisinha em TUDO que e lugar tambem e um grande desafio! Abcs!
pela pele
Sobre a pele, inventário de cicatrizes
Sobre o colo, constelação de pintas
Sobre as ancas, tilintar de quadris
Sob os pés, geografias psicológicas
Sob a cabeça, espremidos pensamentos
Sob a guela, abafadas lutas
Sob o peito, coração líquido
Sob as veias, rios de sonhos
Sobre o mundo, giros.
Sobre corpos, tornam-se um.
http://pensologodanco.blogspot.com/
OI, teu texto deveria figurar num manual prático sobre "o prazer de ser homem". A maioria odeia barbear-se.Beijo
"A ardência maravilhosa de quem se machuca todo dia para não ter vergonha de suas dores."
Muito bom! Ótima crônica.
Abraço!
Fabrício,
você transforma o inusitado do cotidiano em quase uma odisséia! Todo homem devia ler!
Adorei!
Como sempre inteligente e instigante... Parabéns!
outro dia li uma crônica, não me lembro do título agora, mas era sobre a poesia ter esquecido do leitor. muito boa. aí eu pensei: 'quem é esse fabricio?', aí hoje por acaso eu vi seu blog e pensei: 'há-há! é ele."
você escreve ótimas crônicas, mas ainda não li suas poesias.
Até.
bjo, bjo, bjo...
Muito bom, FC. E o novo template ficou lindo. "quem é este Fabrício?" acima me fez sorrir. :) Abraço!
"...difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia."
´Tive que rir da constatação, são os tempos modernos.
Eu já desejei ter nascido homem quando era criança, acreditando que o mundo fosse bem mais liberal e fácil para os machos. Não estava errada, mas hoje vejo que também requer seus esforços, como o barbear-se, processo diário (para muitos) que exige muita perícia, com todos os seus gloriosos solavancos e machucados.
Realmente, homem nesse estilo "banho-de-loja" não tá com nada, pelo menos não para as mulheres sensíveis aos apelos e apontamentos sexuais biológicos. Ou seja, para aquelas de vontade, gosto e tudo o mais despertados pela figura viril, dominante e muitas vezes até bruta do "macho-alfa".
Confidenciando, sou de implicar com a insistência do homem em não querer barbear-se, mas, como disse, é só uma implicância, um dos meios de manter sempre uma problemática pendente, afinal viver na calmaria por dias a fio é um troço chato pra caramba.
"É óbvio que pensei que era gay, não fui adivinho, difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia."
Já encontrar homofóbicos é fácil fácil...
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