terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A MALDIÇÃO DA GAROUPA

Arte de Thomas Gainsborough

Eu ria do meu amigo Manoel. Avarento que só vendo. Sua tática era carregar uma nota de cem reais como desculpa para não pagar nada pela frente.

Não é que ele não tivesse dinheiro, o coitadinho não contava na hora com notas menores.

Diante do estacionamento, ele me dizia: “Paga para mim que não tenho troco”. Na banca de revistas, “paga para mim que não tenho troco”. Depois de uma cerveja, “paga para mim que não tenho troco”.

A garoupa salvava seu zoológico. Eu gastava tudo.

Salafrário! Sua companhia me multava como um Ibama. Sua companhia me convertia num traficante de animais. Meu Pantanal financeiro morria a seu lado, à míngua de água. Dos meus bolsos, ouvia os últimos suspiros da tartaruga-de-pente, da garça, da arara, do mico-leão-dourado e da onça-pintada. Não restava uma pena, uma escama, para reconstituir a história de minha generosidade.

Ele terminava o dia sem gastar um vintém. Lustrava o porquinho comigo, preservava a poupança. E ainda dissimulava a mesquinhez com simpatia filantrópica. Em sua concepção, facilitava a vida dos comerciantes ao não tirar o dinheiro miúdo da caixa registradora. Apelidei Manoel ironicamente de Lei do Troco, aquela do ônibus.

Apesar da minha raiva justificada, havia uma verdade sutil por detrás de sua atitude.

Manoel compreendeu a maldição da nota de cem reais. O fardo da nota de cem reais.

Todas as vezes em que levo a mais alta efígie da República, não posso usar.

É trocar a nota que a grana se vai num minuto. Some. Desaparece. Escorre para o ralo.

É magia negra. Algo inexplicável. Mais demorado gastar uma nota de R$ 20 do que uma de R$ 100. Os filhos farejam quando acabamos de desmembrar a quantia, as dívidas são informadas, as contas nos acham na rua.

Existem gnomos credores dentro da carteira, que devoram o cardume filhote da garoupa, deve ser isso.

Como um valor pode desaparecer momentaneamente? Vejo-me como vítima de um truque de prestidigitação, de um golpe de ilusionismo do Banco Central.

Você evita torrar os cem reais, faz solenidade, economiza a folhinha durante sete dias.

É comprar com ela uma cartela de aspirina que perde o controle da situação. Sobram R$ 98, quase a mesma coisa, quase. Mas o montante evapora em menos de duas horas.

Há uma imunidade parlamentar na cédula azul, que permite que ela resista mais. Quando vira outro bicho, desaparece.

Tanto que Eike Batista se recusa a carregar notas de cem reais. O homem mais rico do Brasil não é bobo de arriscar sua fortuna numa superstição.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16957

8 comentários:

Anônimo disse...

"Há uma imunidade parlamentar na cédula azul, que permite que ela resista mais. Quando vira outro bicho, desaparece." Ainda estou buscando tal imunidade no cartão de crético, ao invés de, por exemplo, "seu saldo é de R$ 500,00", deveria ser, "seu saldo é de 5 notas de cem reais", talvez assim eu gastasse menos, ou não.

Anônimo disse...

Ri com essa, rs

disse...

Nossa, você transformou em palavras o maior dos mistérios. Achei que era só comigo (todo mundo acha, né?) Até que vem alguém e bota em palavras. rs Demais!!
Seus textos são quase perfeitos (perfeição é meio chata).

Rubia disse...

Lembrei da minha filha....dava uma graninha prá ela aliviar o mes e quando saíamos, valia a lei do troco e eu , solidária, pagava os meus trocados e os dela...ótimo texto!

Débora F. disse...

Queria ter seu cérebro.

Ely Vieitez Lisboa disse...

Carpinejar,
Eu já afirmei que ser poeta, em você, é genético. Conheço a obra poética de seu pai e acabei de ler vários livros de sua mãe, a grande poeta Maria Carpi. Tenho um espaço fixo no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto, aos domingos. Vou publicar um comentário sobre a obra de sua mãe, dia 5 de fevereiro. Como enviar o texto para ela?
Em tempo: ainda não sei se gosto mais do Carpinejar poeta ou cronista. Inteligência exacerbada dá nisto.
Abraços.
Ely Vieitez Lisboa

Ely Vieitez Lisboa disse...

Grande Poeta (ou Cronista),
Caso se digne a me ajudar, dizendo-me como mandar meu artigo, do dia 5/2, sobre Maria Carpi, como fazer o texto chegar às mãos dela, meu e-mail é: elyvieitez@uol.com.br
Obrigada.
Ely

Nadine Granad disse...

Hahahahaha... morri de rir!...

Ass: fragmentos d'alma.


OBS: deixo aqui meu protesto: não consigo escutar seu programa na rádio =/


Beijos =)