terça-feira, 21 de maio de 2013

A ALMA DO PARA-CHOQUE

Arte de Roy Lichtenstein

Comprar carro é enfrentar o pânico de batê-lo no primeiro dia.

Saio da concessionária com o pé tremendo no acelerador, ligo o pisca-alerta 10 minutos antes do contorno. Ando realmente devagar como uma mula, tranco o sinal, recebo buzinadas.

Reedito um nervosismo de autoescola, erro as marchas, belisco o meio-fio, sequer mexo nos botões do painel para não me distrair.

Pelo impacto da emoção, desaprendo a dirigir.

Não é só comigo que ocorre. É a maldição do primeiro dia da compra. Todos temem arranhar o veículo na saída, estragar o investimento, manchar a reputação de motorista sério. Pode ser piloto de Fórmula Truck ou um adolescente filhinho de papai, o medo é contagioso e não escolhe as vítimas.

Quem não pegou a chave no salão encerado e vacilou em pensamento: “Como vou tirá-lo daqui com essa gente me olhando?”

Vem uma mendicância, uma desvalia, uma orfandade com carro novo.

Será uma humilhação acionar o seguro já nas horas iniciais. Imagina: nem mostramos para a família e a novidade está sequelada. Ficaremos com a sensação de que não merecemos o presente. É assinar o atestado de incompetência.

Carro novo deveria vir do estacionamento direto para a garagem. Sem risco de barbeiragem. Sem trânsito no meio do caminho.

Carro novo é carro emprestado ainda. Será nosso depois que desaparecer o cheiro de chiclete dos bancos.

Carro novo é o autêntico teste de balizas. Um magneto de desastres. Um ímã de inveja. Não tem como dissimular sua estreia, a lataria traz em si faróis de neblina.

Atravessamos as ruas como se estivéssemos nus. Indefesos.

Sabe aquela história da infância: quando tudo está perfeito alguma coisa de ruim acontece? Introjetamos essa máxima sádica dos avós e boicotamos nossa felicidade.

Acho que os outros motoristas se sentem incitados a nos testar. Não abrem passagem, não facilitam a troca de pista, motoqueiros surgem do nada, caminhões trancam as vias no cimo da ladeira.

É o equivalente adulto do sofrimento do tênis branco. Na escola, quando aparecia com conga novinho, os colegas se aproximavam maldosamente para me batizar. Sempre voltava da aula com o par sujo e emporcalhado. Impossível conservá-lo por 24h.

Quando compro carro, não me arrisco mais, não barateio a paz.

Entendo que a alegria é uma solidão. Nossa maior solidão.

Com um veículo brilhando em casa, passo a andar de ônibus por uma semana, até vencer o estágio probatório do acidente. Os filhos e a namorada juram que enlouqueci, mas não vou dar mole ao olho gordo. Só pego o carro quando ultrapassar a zona de risco de sete dias.

A superstição é meu para-choque.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 21/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17439

4 comentários:

Obat kanker prostat disse...

Tanks for information,,,,,,,

ana disse...

Nao é só com carro novo. Me lembro de quando fui buscar um carro usado que havia comprado. Vinha dirigindo pela 23 de maio como se eu nao tivesse ainda carteira de motorista, de tanta inseguranca que sentia.

Luis disse...

Acho que quando estamos negociando um carro, e vendemos ele, mas faltam os detalhes e temos que dirigir um carro já vendido, mas ainda não entregue, a tensão é muito maior! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

nanda disse...

Foi exatamente assim que me senti, aquele povo todo me olhando dentro da concessionária, e a vergonha do carro morrer? E o medo de bater em outro carro na rua? Tive que apelar, chamei meu pai pra ir comigo huauha...