domingo, 31 de janeiro de 2010

O QUE SONHEI SER E NÃO FUI

Arte de Lauren Hamilton


Aos sete anos, projetava que minha vida estaria resolvida aos 37. Administraria somente a felicidade. Dei o prazo de três décadas para não me preocupar. Talvez o paraíso naquela época fosse cabular temas, não ir à escola, muito menos ser submetido às provas. Não mirabolava encargos, superações e dificuldades. Até porque a vida adulta é distante, uma velhice para criança.

Recordo a atmosfera do que imaginava. A sensação de alívio do futuro. A felicidade seria estável e permanente. Era uma fórmula que deveria encontrar e adotá-la no restante dos dias. Algo como a receita de galinha recheada da avó. Uma vez feito o prato, ele se repetiria eternamente.

Não enxergava o estado provisório e fugaz do sentimento, um clarão que nos ajuda a suportar depois o escuro. Hoje entendo que a felicidade é rara, relampeia, olhamos onde estão nossas coisas e seguimos tateando com mais facilidade.

Não sou sinônimo de sucesso. Moro provisoriamente na residência materna, tenho duas separações, sequer possuo algum imóvel. Deixei duas vidas, duas casas, tudo o que construí e acumulei ficou para trás. Caso não tivesse me divorciado, estaria confortável e poderia investir na bolsa de valores. Guardo a biblioteca em centenas de caixas na garagem, não há como consultar os livros. Os rendimentos são subjetivos, provados pelos extratos bancários.

Mas não pretendo ser diferente, não entrarei no apartamento de amigos ricos e fingirei igualdade. Não peço emprestados outros mundos para aliviar o meu. Estou contaminado das manias para mudar.

Apesar da fragilidade, não me coloco como um coitado, uma vítima de decisões erradas. A cada mês, sou obrigado a inventar um salário. É assustador e delicioso. Eu perco meu emprego todos os dias. Enviúvo compromissos e caso com expectativas. A rotina não é interrompida por finais de semana. Domingo e terça-feira são iguais. Não me formei em medicina para justificar plantões, ocupo a família com minhas desocupações.

Espumo águas paradas. Qualquer desastre não é trágico. Qualquer desmemória não é o fim. Sou rápido o suficiente para me digitar de novo. Desde o início. Não desmereço as frases porque já foram escritas.

Os filhos não se acostumaram com a atmosfera instável, acham que sofro à toa e que me alegro ainda mais à toa. A namorada tenta esclarecer as extravagâncias. Na casa dela, não consigo relaxar, banco a faxineira. Passo aspirador, lustro mesas, lavo a louça e dobro as roupas para brincar que é minha casa. Ela enlouquece, mas sua ternura atrapalha a raiva. Sinto saudade de varrer a rua. Saudade não é arrependimento.

Há gente que se gaba em dizer que cumpriu o sonho dos sete anos. Seguiram à risca a ambição de pequenos.

Eu fico com dó da coerência. Desse jogador de futebol que não admitiu a confusão vocacional. Dessa bailarina que não desobedeceu ao contexto. Desse cantor que não reparou na encruzilhada.

Nossa cultura valoriza demais o planejamento. Como se a linha reta fosse uma virtude.

Eu não fui o que minha infância traçou. Aquilo era fantasia. O que sei fazer é recomeçar e frustrar condicionamentos.

Para um escritor, seria uma enorme falta de criatividade ser o que imaginei quando criança.

44 comentários:

Shima disse...

Estou com 31 e me faltam 6.
E tenho a sensação de ter realizado outros sonhos, os não-sonhados, cumpridos pelo avesso, no cotidiano que passou e não percebi.
O caminho original continua ali, intacto, desde os meus 7 anos. Não me tornei nada daquilo que sempre sonhei ser.
Agradeço à alma de artista a auto-traição voluntária.

Raiana Reis disse...

Olá Carpi, seu texto vem no momento reflexivo de domingo a quem busca tantos futuros aos 27 rs, eu e o mundo que crio no 'diariamente' e as vezes uma falta de maior planejamento, mas desejos imensos. A vida realmente não é fórmula matemática ou sequer planos de um infante, mas a docura e acidez da mesma laranja, cabendo a nós o bom desfrutar...
Amando sempre suas inspirações, beijos e desejos de dias vibrantes pra você.

nanda barreto disse...

se a gente não muda no meio do caminho,
é por pura cegueira diante das pedras.
daqui a 30 anos, se tudo sair como planejo,
alguma coisa terá dado muito errado.
né não?

Camila Valeriano disse...

Olá, estou com 22 recém completados e os planos que havia traçado quando crinça, 'encerravam' minha vida nesta idade. De acorod eles, já estaria casada, aguardando a chegada do primeiro rebento. Nada aconteceu como o planejado e hoje realmente não me vejo da forma que havia pensado no início da vida. Hoje me reinventei e sou muito melhor do que imaginei que seria nessa idade!!!
Bjks

Poliana Paiva disse...

frustrar condicionamentos devia ser uma atividade remunerada.

Fê Elias disse...

"A evolução só é possível quando existe uma manifestação para ser contestada(...) É impossível mudar sem se expor ao erro absoluto."
Nossa luta constatante: FRUSTAR CONDICIONAMENTOS.
Adorei o texto!!!

Wania disse...

Fabro querido!

Uma reta é um caminho muito monótono e pouco criativo com certeza, portanto quando mais esquinas dobrarmos, mais sonhos que não seremos, mas mesmo assim é sempre mais...

Saudade de ti, meu amigo
Um beijo enorme,
Wania

Anônimo disse...

Carpinejar,
ainda carrego comigo essa ideia de que aos 30 e poucos vou estar estável e feliz. Aos poucos começo a ter essa sua visão de que nem tudo é dessa maneira, apesar de ainda estar longe de sequer completar 25.
Abraços!

Mariany Carvalho
[meu blog: http://badu-laques.blogspot.com/]

Kari disse...

Acho que, se fóssemos o que queríamos ser aos sete anos, seria um pouco frustrante...
O bom da vida são aqueles improvisos...

Beijos,
Kari, a noiva do Sadi

Anônimo disse...

O que me saltou aos olhos neste texto, para além do principal já comentado, foi sua sinceridade. Isso é uma herança muito bacana de sua infância...
Um abraço, irmão!
Fabio Pereira

Rachel disse...

Ler esse texto foi melhor coisa que aconteceu hoje pra mim. Acho que era mais ou menos isso que eu estava tentando falar quando escrevi meu último texto do blog.

Dalva M. Ferreira disse...

Super. Invejinha...

Fred disse...

O mais legal é que, a cada dia que passa, encontro mais pessoas falando sobre isso, ou até já vivendo isso. Não é fácil, mas é muito bom.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto! Me emocionei, por me identificar com ele.
Mas, é melhor chegar a idade adulta errando, desviando, acertando e errando de novo do que aqueles que seguem sempre a mesma linha reta e aí um belo dia, acordando e se dão conta que não viveram, não aprenderam, não conviveram...Aí partem para fazer tudo o que não fizeram durante a vida!
Ridículos são eles!

Danilo Reis disse...

nesses últimos dias tenho pensado muito sobre isso, ótimo entrar aqui e encontrar um texto com algumas conclusões que cheguei. e parabéns pelas frases-.

angela disse...

Eu já passei de um tanto os 37 e estou naquela idade em as vezes me angustio pelo tempo cada dia mais curto e me delicio no lugar em que estou. Longe de quase todos os sonhos, os que se realizaram estão incompletos, tenho um conforto no coração pois ele me levou para onde eu queria estar e meu pensamento e sonhos não sabiam.
Texto inspirador e lindo.
beijo

Renata de Aragão Lopes disse...

Também pra mim,
a vida está longe
de ser retilínea...

Anônimo disse...

Ninguém discordou do Fabrício? Todo mundo na mesma reta?haha

Fábio

Aline Gomes disse...

Muito bom começar a semana carpinejando com esse texto.

Hakita disse...

Realmente, a vida que sonhamos quando crianças é utópica e fico feliz que assim seja. Já imaginou se nossos sonhos não evoluissem com o passar dos anos, o amadurecimento? Estaria até hoje sonhando com uma Barbie nova!
Quando a adolescência chega, somos tomados por contradições, mas que fazem sentido! São contradições que pertencem ao nosso ser muito mais que a linha reta de criança. Somos humanos irracionalmente emotivos.
Adorei o texto!

Pòmba disse...

eu prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. sobre o que é o amor, sobre o que eu nem sei quem sou.

Pomba twitter claudiarborba disse...

esse texto me conforta, mas eu ainda acho que tenho 7 anos. Ainda quero viver a linha reta, se eu encontrá-la no meio dos nós que eu fiz ao longo das décadas que alimentaram meus sonhos.

Jééh disse...

nossa a lista de coisas que eu devia ser e não fui é interminável, e quer saber? isso não é nada bom/fato :S

Bianca Rosa disse...

Que bacana seu texto. Na verdade, se você não se considera sinônimo de sucesso, tampouco deve se considerar de fracasso, pois as numerosas pessoas que te consideram querido, tanto aqui como em outros espaços teus, já te consagram como um cara bacana e talentoso. Tropeços na vida todos temos, mas isso significa que seguimos tentando ser felizes, nada é melhor na vida do que agir conforme fala o coração.

Yaci disse...

Sendo sincera, este foi um dos textos teus que mais mexeu comigo... vi a franqueza do desabafo em cada linha. Me senti uma amiga sua.

Mariah disse...

fabrício,
impossível descrever o efeito desse texto em mim.
vou tomar a liberdade de publicar lá na minha casinha com o link daqui...se me permite!
parabéns...você é humano!

Ana Filipa Oliveira disse...

Dentro do caminho recto podemos fazer algumas curvas. Nem todos os caminhos rectos foram ou são de neuróticos. Alguns, sim. Outros, não. Pois dentro das margens do caminho há espaço para rodopiar. É bom ter uma luz, um objectivo, uma meta. Caso contrário, seremos como alguns cães em fúria correndo atrás do seu próprio rabo, sem sair do lugar.

kamila cardoso disse...

você pode até não ser sinônimo de sucesso, mas é um bom exemplo a ser seguido pela pessoa e profissional que é. te admiro muito.

Anônimo disse...

Puxa... eu já te seguia no twitter, já gostava dos seus twitts, e agora que li o blog virei sua fã... "Não peço emprestados outros mundos para aliviar o meu" , "sua ternura atrapalha a raiva", adorei!

Tenho uma postura parecida com a que disse no texto, vivo metendo o pé na jaca sem que as pessoas entendam e perco a vida e ganho a cada ano... mas não consigo ser diferente, quem segue o coração tem que aguentar essas consequencias. Abraços

barbara disse...

Amei...semelhanças mil comigo .Li seu texto no somostodosum.Vi vc uma vez no Jô nem acredito que te axei num blog. fiz um blog hj só pra te seguir.Não é que gostei!rs
Um abraço grande.

Kinha disse...

Sabes o que acho? Vc não é o que sonhou aos 7 anos, pq seus sonhos mudaram, seus referenciais, ideais, transformaram-se ao longo dos anos.
O que não mudou, foi a idéia que fizeste do sonho de criança....

És um guerreiro e a prova está aqui:

"...Apesar da fragilidade, não me coloco como um coitado, uma vítima de decisões erradas. A cada mês, sou obrigado a inventar um salário...
Qualquer desastre não é trágico. Qualquer desmemória não é o fim. Sou rápido o suficiente para me digitar de novo. Desde o início. Não desmereço as frases porque já foram escritas."

É isto aí garoto, derrote a mesmice da maioria das opiniões alheias ;o)
Adorei sua participação no Jô. Tu disseste coisas bem legais...rsssss...
Desejo a ti muito sucesso.
Um abraço.

Carol Borne disse...

Vou fazer 42 este ano e, sinceramente, "eu não fui o que minha infância traçou. Aquilo era fantasia. O que sei fazer é recomeçar e frustrar condicionamentos".
Também moro provisoriamente com mamys, tenho medo do futuro, dou risada do passado e me angustio com o presente.
Obrigada pela reflexão.

Topeter disse...

Legal, Fabrício! Deve ser bom, embora dê frio na barriga, não ter script, ter que se reinventar a cada dia e a cada texto. Isso pode ser chamado, pelos conservadores, de instabilidade; e, pelos sonhadores, de aventura. Mesmo que você não tenha imóveis ou muito dinheiro no banco, tem colecionado e distribuído emoção, reflexão, arte. É o que conta. Vou linkar esse texto, de que gostei muito, no meu blog. Grande abraço.

Tábata Mori disse...

Olá não te conheço a não ser pelas (in)verdades que disse acima. Sou a bailarina de 7 anos, que se tornou jornalista e de vez em quando poetisa. Já fui, engenheira, um a grande administratora, fotógrafa, até física. Ja fui pagã, já fui espírita.

Hoje sou apenas uma mulher de 30 anos, cristã, que gosta de escrever e ler. Danço no quarto e no escuro, rio alto, minha máquina fo'tográfica anda empoeirada, mas minha criitividade, intacta.

Amanhã, também não sei quem eu serei!

Anônimo disse...

Como o próprio conceito já diz, planejar é a arte de elaborar um plano de um processo de mudança. Então entendo que podemos sim sonhar, planejar, projetar, imaginar, querer algo e nem sempre conseguirmos como planejavamos, pois no decorrer do caminho emprevistos aparecerão e se souberes lidar com eles certamente tornará realidade o que um dia imaginou

Anônimo disse...

Belo texto. Ótimo para quem fracassa em tudo e precisa achar motivos pra não abrir a janela, olhar pra baixo e pular.

Anônimo disse...

Fiz a prova da UFRJ hoje e esse texto era o último da prova. De cara adorei. Fiquei curiosa e procurei no google por essa sua crônica. Esqueci o título, mas enfim eu a encontrei. Bem aqui. Um texto realmente fantástico. Espero escrever bem assim um dia. (Foi exatamente o que pensei quando o li.)

Anônimo disse...

Fiz a prova da UFRJ também.
Fiquei louca por esse texto, amei amei de verdade. *-*

Luli disse...

Seu texto estava hoje na prova da UFRJ. Obrigada por ter feito meu esforço valer a pena. Lindo texto! Você escreve muito bem!

Anônimo disse...

Carpinejar,
Fiz a prova da UFRJ tb! E amei seu texto...
Uma das primeiras vezes em que alguém conseguiu falar tão bem o que poucas pessoas conseguem falar sobre. Pra ser sincera, foi o único texto seu que li até agora, mas fiquei encantada com a sua maneira de escrever! E com certeza daqui pra frente irei acompanhar seus trabalhos!

disse...

Olá, sou mais uma que fez a prova da UFRJ no domingo e adorei seu texto.

Identifiquei-me: estou com vinte anos e há três os meus sonhos já começaram a ser descontruídos. Já faço uma faculdade e as vezes me pergunto porque inventei de fazer vestibular de novo.

Enfim, obrigada por colocar meus sentimentos no papel melhor que eu. Desculpa pelo desabafo.

Passarei a acompanhar seu blog a partir de hoje.

Renata

Carol disse...

Você é genial!

Anônimo disse...

Seu texto foi usado na prova da UFRJ, onde li pela primeira vez e me encantei.
Realmente, nos mostra uma lado muito reflexivo, onde as pessoas estão acostumadas a seguir padrões impostos pela sociedade. Casar na hora certa, temos que ter filhos e na hora certa, encontrar a pessoa certa e assim por diante... Mas o que é ser bem sucedido afinal? Não seria ser atípico? Pois cada ser humano tem sua fórmula especial, sua vocação e sua busca evolutiva. E quem disse que o futuro é certo? Acredito que quebrar paradigmas sim, seria um começo da busca de felicidade. Pois, nínguem é cópia de uma outra pessoa.
Abçs, Raquel Fuentes.

virtus disse...

Um extraordinário guerreiro...