sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

BELICHES

Arte de Kurt Schwitters

As imobiliárias deveriam oferecer serviço de assistência psicológica. Há clientes que não resistem ao trauma de alugar um apartamento. Eu sou um deles.

Dependia de um fiador. Respondi para corretora que isso era barbada. Tenho dois irmãos com imóveis, ambos de carreira consolidada. Tive o impulso de discar na hora e resolver o pré-requisito na frente dela, mas me guardei, delirando que brigariam para ocupar o posto.Liguei primeiro para o mais velho, expliquei a urgência, sustentei que sempre paguei todas as minhas contas em dia, sofro pânico de atraso, ele sabe, mas foi enrolando e enrolando, avisando que não queria assumir nenhum risco. Risco? Que risco?

Ele prometeu retornar em seguida. Nunca mais me telefonou.

Não desanimei, acessei minha irmã. A prosa foi ainda mais árdua. Ela começou a me rebaixar para justificar que não desejava ser minha fiadora. É natural que o outro nos coloque em julgamento para se desculpar. Argumentei que não desfrutava de condições para empenhar o seguro-fiança, porque vivia os meses mais difíceis a um escritor, janeiro e fevereiro, sem palestras e movimentação literária. Ela não declinou, acentuou a violência do timbre.

- Precisa se virar sozinho.
- É a regra, não há como ser sozinho.

É terrível quando alguém se mostra vulnerável e o interlocutor aproveita para atacar. Poucos são os que sabem receber a fraqueza de um familiar. Ela passou a me agredir, falando que minha carreira é instável, que não podia apostar em mim. Retruquei que cuido de dois filhos, que assumo as responsabilidades, que gosto de ser adulto. Ela lamentou: mais um motivo.

Fui solicitar apoio e já mendigava.

Cansada da discussão, colocou a culpa no marido. "Meus bens são partilhados, ele não admitiria". Pedi para que trocasse ideia com ele. "Não vou estragar meu casamento por tua causa".

Eu me espantava com as nossas diferenças, adotei então uma posição nostálgica, quase masoquista:

- Lembra que você se chamava de Théo (irmão de Van Gogh) e que me ajudaria?

Ela foi cínica:

- Van Gogh era esquizofrênico, você não.

E desligou na minha cara.

O que aconteceu com a gente, manos? Na infância, vocês seriam capazes de deixar de comer para que comesse, vocês seriam capazes de guardar segredos para não me assustar, vocês seriam capazes de apanhar para não me denunciar aos pais.

Quando a mãe separou o beliche em dois quartos, dormimos juntos no chão. Para não perder as conversas no escuro.

A sensação é que largamos nossa origem após o casamento. Viramos um feudo. São somente os filhos, a esposa ou o marido, todos os demais são intrusos e incômodos. Não confiamos para gerar confiança, não tranquilizamos a esperança. É o boicote, o medo, a paranóia.

Ao procurar um calço entre meus irmãos, vejo que não tenho família. O dinheiro termina com qualquer laço. O amor não tem fiança.

35 comentários:

Anônimo disse...

Entristece isso, né? Ao ter que sair de casa por uma separação (que não foi ideia minha) me vi tendo que alugar um apartamento às pressas. Sorte minha foi ter - antes de descobrir que talvez não tivesse apoio da família - o apoio de uma amiga. Aluguel direto de ap e ombro para chorar as mágoas e a menor desconfiança de que eu talvez não pudesse arcar com esta responsabilidade. :)

MOMENTOS disse...

Uma vez passei por situação semelhante e ouvi a seguinte frase: "Sei da sua honestidade e idoneidade, mas se você não tiver o dinheiro para pagar quem vai ter que pagar sou eu. Não!"
O jeito é procurar um imóvel que aceite depósito, comprar uma carta fiança ou tentar negociar direto com proprietário.
Viver é a arte do possível.
Boa Sorte!

Danilo disse...

"o dinnheiro termina com qualquer laço" é uma frase triste por ser a mais absoluta verdade.

ana disse...

Na infância o mundo se resume à família. Todos precisam estar bem para que possamos estar bem. Quando adultos, nossos esforços para que todos cresçam juntos se tornam tão frustrantes devido à complexidade da vida e as diferenças de personalidade que optamos por nos manter à distância, mesmo que isso nos faça sofrer.

Anônimo disse...

Te juro, deu vontade de ter dinheiro, agora.

:)

Kari disse...

Eu sempre achei que briga de herança era coisa de filme... Mas sabe que me deparei com a mais pura realidade?

Antes da morte da minha avó, eu tinha um avô e uma tia. Depois que ela morreu, eu perdi os três.

Beijos

Anônimo disse...

vida de poeta é foda! primeiro vai o amor, depois a família.

Anônimo disse...

Amigo que triste isso. Me lembrei do antológico filme do Bergman - Gritos e Susurros, que traça um paralelo parecido entre irmãs.

Mas é filme com cara de vida, que dói na alma tal esfriamento de valores e afetos.

Ivi Medau disse...

Estou numa situação onde dizer "não", acaba comigo. Porém é preciso para que a pessoa em questão retome as rédeas da propria vida nas mãos.
Outro perigo que existe em ajudar, principalmente alguém da família, é que isso vira"obrigação" depois de um tempo. Basta não poder estender a mão uma única vez para ser amaldiçoado pro resto da vida.
Raríssimos os familiares que lidam com dinheiro de forma tranquila e justa.

Um beijo, querido!

joyce disse...

queria tanto poder ajudar vc, de verdade.
puxa!
que vc consiga logo esse fiador... vou orar por ti.

abraço.

angela disse...

Ah A cigarra e a formiga!
Quando todos eram cigarras cantavam juntos, agora que dois se transformaram em formigas cultivam a inveja dos seus cantos e devolvem a amargura da vida sem prazer pra você e assim eles tem o prazer, de pelo menos por um tempo, a cigarra não canta.
Que alguem lhe ajude, sempre vem dos lugares menos esperados.
beijo

Samyta disse...

O que conforta é saber que tudo tem volta. Tenho certeza de que quando eles precisarem de vc, não vai ser do mesmo jeito...
É por situações como essas que valorizo mais os amigos que escolhi que os laços meramente sanguíneos.

Isa Arth disse...

Fabrício, estas verdades sobre os interesses materiais são repassadas pela postura da educação social e familiar. Eu também me pergunto, por quê? Por que assimilamos estes comportamentos tão mesquinhos? Irmãos genuinamente se protegem, quando crianças brincam, disputam o amor dos pais, mas as vicissitudes vida interferem de maneira drástica em nossas ações, e uma mudança de comportamento vai assombrando aos poucos aqueles espíritos, outrora tão certos do amor incondicional entre os irmãos queridos, crianças arteiras e criativas... Entretanto, penso que isso se modifica, no momento de uma perda, de algo que venha a ferir o orgulho depositado na alma cega de ambição material. Como tudo, com o tempo passa, ou melhor nos melhoramos... Mas esteja certo que o amor incondicional entre irmãos jamais morre, apenas deverá haver tempo para que a próxima lição os conscientize do quanto é bom estarem sempre unidos e se apoiando. É a vida...
Seu texto é fabuloso, atinge diretamente o coração... Felicidades!

Dâmaris disse...

É dificil eu sei...
mas não deixe de ama-los a vida vai mostra-los o verdadeiro valor das coisas...

Sou sua Fâ..

Boa Sorte!

Unknown disse...

então Fabricio sou sua fã no ultimo mesmo....e quer ofazer uma obsrvação, sabe, tenho 4 irmãos, moro longe deles no sul, fico anos sem vê-los,temos um contato razoázvel,´passamos juntos uma infancia muito dificil, triste, doentia, uns sofrendo pelos outros, não sei de nos quatroquem foi a maior vitima da doença do meu pai o alcoolismo, mais todos sofremos com as sequelas dessa doença que transformou nossa infancia num inferno, porem temos um laço impressionante, toda vez que precisei dos meus irmãos eles tão ali pra me ajudar, e eu a eles, os amigos somem, mais a gente é tão unido que acho que nem a morte vai nos separar, a gente tem altas brigas, podemos ficar de mal por anos, mais se alguem de nos precisa a briga acaba na hora e o que prevalece é a fraternidade real que no une, o amor,e eu acho que esse amor so se enraizou na dor um do outro, eu lembro que quando um ods meus irmãos apanhava eu chorava baixinho por sentir tambem a dor!!!!

Jééh disse...

nossa um texto emocionante T.T
acho que não é só o dinheiro que atrapalha no fundo todos nós mudamos e depois não reconheçemos mais :S
a vida só facilita isso :\

Muito Igual a Você disse...

Triste.

lídia martins disse...

É por essa razão seu moço, que eu não quero alcançar o poder tão cedo. Não vou correr o risco de me sentir maior que o mundo.

Fantástica analogia.

Te abraço. Me abraças.

ana disse...

Fabro, faz parte da História que todo gênio tem que contar com um pouco de abandono.

celia.musilli disse...

Fabro, admiro demais vc pela forma como se coloca, sempre tenho dúvidas sobre escrever coisas da realidade, da vida pessoal,e coloco um pé na ficção..Vc não, aqui coloca o que aconteceu de fato, com todas as vírgulas e pontos. Nem sei o que te dizer diante do insólito da "fraternidade", temos muitos irmaõs soltos no mundo, que não são irmaõs de sangue, mas agem como se fossem. Nossa família é grande e, se eu estivesse na mesma cidade que vc, seria sua fiadora..Vc há de achar alguém por aí, com menos questionamentos e mais boa vontade.Um beijo e boa sorte? Acredite, vc tem estrela!!! Célia (www.sensivelldesafio.zip.net)

Nádia Lopes disse...

ah, Fabro
lembro bem quando grávida passei pelo mesmo "não posso ser teu fiador" e da minha cena dramática sentada num fio de calçada do menino deus, chorando de boca aberta, meu desamparo, meu abandono, meu orgulho que precisou ser engolido para mendigar mais um pouco e enfim conseguir um sim!

Anônimo disse...

Vizinho, tenho uma experiência tão terrível como fiadora(coisa de invadir o imóvel com advogada e descobrir que limparam a casa e fugiram na calada da noite), que se transformou em fama de jamais, nunca mais, aceitar outra fria.
Mas, como já quebrei a promessa para um sobrinho, então, se ainda não arranjou fiador, manda o contrato por e-mail, que eu assino embaixo e devolvo. Aí, você passa no ponto do Mauro e pede para ele rubricar e fim de papo!
Que coisa triste essa coisa de família dizer não, né? É o preço da independência, mas vida de escritor tem essas coisas, eu acho, por conta da instabilidade de vendas ou coisa assim. Estarei conjeturando sobre nuvens?
Sabe aquele dito popular: se quiser conhecer um amigo, peça cem reais emprestados?
Peço a qualquer um, menos à família, que essa instituição e dinheiro nunca fazem boa dupla.
Abraço.

Unknown disse...

Fabricio, já andei por aqui mas meio na corrida.
Se já te admirava, agora ainda mais, com esta confissão escancarada, com esta coragem ímpar.
Ainda bem que tu existes em meio à mediocridade que impera.
Confia e continua iluminando mentes com tua mente inquieta e criativa.
Tudo acaba dando certo para quem merece.
Fica com Deus, um abraço

Mariah disse...

sou mãe de filha unica e de vez em quando (raramente) me bate uma dúvida, uma tristeza, por privá-la da alegria das conversas no escuro, dos segredos e dos beliches...mas vendo cenas como essa, tão comuns hoje em dia, aproveito para me auto-justificar!

Anônimo disse...

Você não tem pressa pra pagar as contas...

juliana disse...

Conheces aquele ditado:"o cachorro é o melhor amigo do homem pq não conhece o dinheiro?".....pois é, ao me ver podemos contar somente com pai e mãe na hora do aperto, irmão passa a ser um desconhecido.
Parabéns pelo texto Fabro.

Maria Tereza disse...

Um dia meu pai me disse: "nunca empreste cheque nem pegue dinheiro emprestado de ninguém. Nem minha mãe me emprestava folha de cheque." Às vezes família tem dessas coisas. Mas o pior é quando a gente paga em dia e leva um não na cara... Já me ocorreu isso algumas vezes... :/

Anônimo disse...

Tive sorte com meus familiares fiadores, parentes distantes com quem pude contar. Mas não com algumas imobiliárias, afirmo. Será que isso continuará?

Carolina disse...

Um saco não é nem essa droga de arrumar fiador e etc.
É você ter q ouvir do irmão ou do pai ou da mãe coisas desse tipo. Ao invé de ajudar, sempre questionando sua maneira de viver, jogando na cara suas escolhas, como se não fossem tão boas quanto as do outro. Uma falta de respeito.

Anônimo disse...

É como diz um amigo meu, Corretor de Imóveis: " O problema do mundo é o vil metal!" Encontrei vc na imobiliária, lembra? Pedi autógrafo... Queria poder ajudar a solucionar isto. A confiança hoje requer conta corrente com números altíssimos. Frase de "A Menina que Roubava Livros": ' Os seres humanos me assombram!' Abraços.

Viviane disse...

oi fabrício. sempre penso muito nisto, em qto o afetivo acaba mediado pelo dinheiro, sobretudo. há pessoas (e, infelizmente, elas são muitas!) que colocam o dinheiro e a noção de sucesso como o ápice de suas vidas. e baseando as suas vidas nisto (e procurando sempre acumuluar mais, sempre se distinguir mais de seus "parecidos", seja através de um carro melhor, uma casa melhor, uma viagem mais cara e exótica, etc), analisam e julgam os demais pelos seus valores. com isto, se colocam como o centro - tudo o mais e todos os demais não contam. este é um dos principais efeitos colaterais de nossa sociedade: o individulismo, o "si mesmo" como centro e como norma de conduta.
e embora a gente perceba e compreenda como estas coisas vão sendo construídas, isto não torna mais fácil viver num mundo assim. bem, pelo menos isto causa incômodo a muitas pessoas, como em ti.
eu tb me incomodo com isto, e não aceito que as pessoas queiram avaliar as demais pelo que tem, ou mesmo que não se coloquem como responsáveis pela condição de vida das outras pessoas também, o que é essencial para nos deslocarmos e nos tirarmos do "eixo central".
eu vejo as pessoas ao meu redor preocupadas em trocar de carro, em adquirir um imóvel mais luxuoso, em adquirir o segundo, terceiro imóvel, em comprar roupa de marca, etc., e estas mesmas pessoas não dão sequer um litro de leite para ninguém, elas não se oferecem para ajudá-lo sem que se peça, e quando alguém pede, a resposta é que cada um tem que batalhar para ter o que deseja. muitas dessas pessoas tb são aquelas que pagam R$ 50,00 para a faxina de sua casa de três andares e acham este valor muito caro, porém, por outro lado, o seu salário de R$ 10.000 por mês é considerado muito pouco. em suma, "si mesmo" como centro e os "outros" como nada. realmente, falta alteridade. triste isto.

Ane disse...

Carpinejar é o legítimo poeta: aquele que, com palavras, sensibiliza a poesia no outro.

Para entender melhor, leia os comentários feitos pelos leitores sobre seus textos.

Abraço da seguidora,

Ane.

twitter.com/poesialiteral

Luciana disse...

As relações são complexas, mas ainda assim valem a pena... apesar de vc ouvir isso de irmãos, nao tenho dúvida q alguns 'desconhecidos' daqui fariam isso por vc... no início me espantava com a forma q se colocava em suas crônicas - não estamos acostumados com tanta autenticidade - e hoje, viciada em vc, não aceito mais meias palavras... bjos!

Anônimo disse...

Olá.
Já ouviu dizer amigos, amigos e negócios à parte? Essa é a realidade da vida. Todos temos responsabilidades e é para isso que lutamos no dia a dia. Até acredito que seus irmãos também estejam na luta e não sei por quê eles não te apoiaram...teve algum antecedente para essa agressividade da sua irmã? Precisamos dos depoimentos deles né!
Boa sorte!!

Anônimo disse...

Teus irmãos não te deram nada porque te amam e sabem o mal que fez, e faz, na tua vida, o ser o "retardadinho da família que merece exceção, misericórdia e tolerância em tudo". E tomara que, por esse mesmo amor, igualmente não tolerem essa tua lavação de roupa em público e exijam desculpas antes de voltarem a falar contigo. Não és nenhum coitadinho, és o Fabrício Carpinejar, o talvez maior escritor da tua geração. Reconhece a tua dignidade, pede desculpas e agradece aos teus irmãos. (By the way, não sou nenhum dos dois, sou só um cara que te conheceu e também te ama).