quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

MINHA VIDA NUM ISOPOR

Famílias dividem a tenda na areia de Capão da Canoa, além do isopor, uma espécie de cofre das riquezas líquidas


Sou farofeiro. Como um caxiense legítimo.

Gringo é exagerado, passional. Desce a serra ansioso pelo mar. Não há como ser discreto se por acaso nasceu em Flores da Cunha ou São Vendelino ou Bento Gonçalves ou Veranópolis. Esqueça a timidez. Haverá uma mãe centenária puxando o coro e pedindo para não mergulhar no fundo. Haverá manos brigando pela fatia com mais leite condensado da torta.

O que é farofeiro?

Os que moram na areia como mariscos, caranguejos, escorpiões.

Seu medo é desperdiçar as férias, então passará o dia enfurnado entre as ondas e as dunas. Quer tirar o atraso de um ano inteiro em 30 dias.

Simples de encontrar. São amplificadores ao natural. Cada farofeiro é uma caixa de som que atinge até 150 decibéis.

Repare ao lado e verá um bando de gente num estado indefinível entre berro, lamúria e risada. Somos nós.

É uma tribo que tenta ser prática e acaba trabalhando o dobro. Seus integrantes são sacoleiros, carroceiros da maresia. Virão curvados das ruas.

Atolados de bugigangas. Não levam apenas cadeiras e sacolas, mas bicicletas, pranchas e colchonetes. Se tivesse tomada na orla, carregariam ventiladores e geladeira. Têm mais pertences na praia do que na própria casa.

O isopor é seu principal componente, o cofre das riquezas líquidas. O tamanho da caixa de gelo sugere o tempo de permanência, que pode durar de seis a 12 horas. Tanto que existe o zelador do isopor, uma espécie de tesoureiro, figura escolhida por votação, responsável por controlar a saída da bebida.

Ele põe o pé em cima da tampa e não permite que um dos veranistas se beneficie mais do que os outros.

O farofeiro não quer gastar à toa nos quiosques. Por isso, economiza e transplanta sua cozinha para a beira-mar. Enquanto o normal é segurar uma latinha para consumo na hora, ele faz estoque.

Tem uma inclinação grandiloquente. Mede a alegria pelo número de cervejas que tomou.

Jura que é de uma raça mais resistente ao sol. Nunca ficará bronzeado, mas vermelho, rosa, lilás. A verdadeira cor da pele aparecerá de noite, depois de tirar as camadas de bife à milanesa.

Os farofeiros gaúchos – não confundir com os argentinos, que representam a ala internacional do setor – transformam lanche em piquenique, convertem almoço em ceia. Foram ampliando seus territórios de lonas. De um guarda-sol, cresceram para uma tenda e já estão dispostos a fundar uma feira. Sua ambição não tem freios. É o case de maior sucesso de empreendedorismo litorâneo.

É aquela trupe esquisita e numerosa, que não deixa nenhum banhista ler um livro quieto. De vez em quando, a trupe conversa num dialeto, que pode ser italiano ou apenas língua presa.

É uma tropa que não chega à praia, mas invade. Simboliza a única comunidade hippie que deu certo.

De uma turma modesta, mínima de farofeiros, é possível formar um time de futebol, um time de vôlei e três duplas de bocha. E ainda sobram reservas.

Não é fácil atingir esse nível de despretensão. Requer um marasmo inato, para não sair do lugar e muito menos reclamar da insolação.

Qualquer mudança de ordem terá a cobertura de suas fofocas. Gritam para um aviãozinho ou helicóptero. Se há ameaça de afogamento, juntam-se com rapidez para formar uma multidão aflita, rezando terço e arremessando os braços ao céu.

Pertenço a uma família de farofeiros, confesso, não tenho cura. Estou estragado para o resto da vida.


Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 39, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 10/02/20010

12 comentários:

Eleonora Marino Duarte disse...

gosto muito de sua escrita! cronista poeta jornalista etc,

você é um talento!

vou seguindo, vou lendo. você tem uma visão bem legal das coisas.

um abraço.

ps: apaixonei pelo "matando carpinejar", (desculpe pela parte que lhe toca rs...) a guria é do balacobaco! sensacional os desenhos e as mortes.

vou lendo.

Wania disse...

Fabro querido

Adoooooro esta tua escrita!
Leio-te ao sabor das ondas...

Parabéns pela estréia na série "Estrelas do Mar", mereces muito mais!


Saudades tuas,
Bjão

Maria Tereza disse...

Pergunto: quem é mais feliz: o farofeiro ou o fresco? O farofeiro, lóóógico! =)

Quimera disse...

No fundo, de médico, farofeiro e louco, todo mundo tem um pouco! hehehe

Paulo-Roberto Andel disse...

sensacional como sempre!

juliana disse...

AMEI!!!!
Bjos Fabro!!

Paulo Ednilson disse...

Pois é Fabricio, só muda o lugar ou a praia para ser mais exato, o farofeiro é uma entidade nacional, é um estilo diferenciado de curtir a orla e olha que nem precisa ser litorâneo para bem incorporar essa entidade! Abração!

Mais um belo texto!

Paulo Ednilson

Anônimo disse...

O farofeiro é educado, ele grita devido ao vento do mar gaúcho!!!

La Vanu disse...

Frofeiro que eu sabia era que levava o frango empanado no isopor e comia ali mesmo, na praia.
Jogava os ossinhos e a lata de cerveja na areia e depois esquecia de jogar no lixo...Só você mesmo pra ver poesia em farofas...

Aline Ventura disse...

Eu, como uma caxiense e farofeira legítima, não poderia concordar mais!
Parabéns, pelo talento e por esse texto. Eu ri muito lembrando da minha família farofeira na praia. O meu pai normalmente é o guardião do isopor! hehehe

Abraço

Bia Simonassi disse...

a.d.o.r.e.i.

Dalva M. Ferreira disse...

Antigamente eu fumava e bebia: quando ia à praia, tinha que levar cigarro e isqueiro, além de dinheiro pra comprar bebida. Agora nem fumo e nem bebo, só levo a chave de casa, os chinelos e uma camisetinha. Desfarofei muito!